Os pingos verde bandeira caíam a intervalos regulares, enquanto examinávamos criticamente o produto do trabalho. A pocinha diminuta que eles começavam a formar no pátio de concreto crispado levou Astrakhanov a comentar:
— Temos que colocar em um saco, ou vai desenhar nossa trilha.
— Eu disse que era pra pintar lá — resmungou Epifânio. — Chama muita atenção andar com um saco pela cidade.
— Menos que andar com isso.
E o russo fez um gesto enfático indicando o objeto gotejante. Epifânio abriu a boca para retrucar. Sabendo que aqueles dois seriam capazes de teimar até de manhã, eu interrompi:
— Agora a coisa já está feita. Vou passar outra demão enquanto esperamos dar a hora.
A rigor, Epifânio não devia nem opinar, já que não participaria da missão de hoje. O Partido não permitira, pois ele e Leonila correriam o risco de serem reconhecidos da última investida. Não que planejássemos dar de cara com os integralistas dessa vez, mas...
De qualquer forma, a casa deles era a que ficava mais perto do galinheiro verde (seria essa a causa do mau-humor quase permanente do casal?), por isso serviu de depósito para os petrechos da missão, e de acampamento provisório, até a hora em que os cidadãos ordeiros estivessem ferrados no sono, e os boêmios, tão embriagados que já não nos reconheceriam.
Ali por volta das três da manhã, eu e Astrakhanov deixamos a casinha de nossos colegas com o saco preto a tiracolo e nos esgueiramos pelo punhado de quarteirões que nos separava da esquina da Rua João Pessoa com a Rua Princesa Isabel, onde, em um sobrado verde claro, funcionava a sede central da Ação Integralista.
Erguendo a cabeça para as quatro janelas retangulares com venezianas no andar superior, e notando que a quarta parecia apartada das outras, como se pertencesse a um anexo do prédio, Astrakhanov franziu as sobrancelhas.
— Será que alguém dorme lá?
Contemplei o mesmo objeto, ponderando.
— Bem, se eu fosse eles, tomaria essa precaução. Mas vai entender cabeça de integralista né.
— Hm — Astrakhanov crispou os lábios, em desagrado. Via-se que ele cogitava a possibilidade de uma armadilha. Mas sacudiu a cabeça, dispersando a preocupação. — Dou uma olhada quando entrarmos. A propósito, já podemos?
— Eu estava esperando o Santa para abrir — respondi. — Ele já andou com os anarquistas, entende bem de diversionismo.
Astrakhanov ergueu uma sobrancelha e emitiu um leve "pfuit!", sorrindo de canto. Ele me entregou o saco preto, que recebi com uma careta, e curvou-se para a maçaneta, após uma instrução vaga para eu vigiar. Em menos de um minuto, ouvi um estalo, seguido de um rangido baixo. Voltei-me para ver Astrakhanov segurando uma das bandas da porta com uma mão, enquanto com a outra convidava-me, com um gesto, a entrar no edifício.
— Espera só um momentinho — eu falei — que não presta deixar aqui sem guarda. Ah, lá vem nosso olheiro — acrescentei então, reconhecendo a manchinha que surgiu na outra esquina da Rua Princesa Isabel, vinda dos lados do Grande Ponto.
O andar meio canhestro de pernas para dentro e o uniforme pardo denunciou a aproximação sossegada de Mário Paiva, cujas entradas na cabeça abaixada reluziam ao luar. A sombra do casarão nos ocultava da visão dele. Então caminhei até o meio da rua, e assoviei. Quando Paiva ergueu a cabeça, apontei para o sobrado, indicando que íamos entrar, e ele anuiu.
Em seguida, sumi com Astrakhanov na escuridão do saguão integralista.
— Ai!
— Que foi?!
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Dias Vermelhos
Historical FictionEm 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-se de uma crise econômica sem precedentes. Os ânimos estavam inflamados ao ponto da selvageria. Maria Clara logo escolheu seu lado...