Capítulo 67 - Nada elementar

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Nem que eu tivesse que dar um salto, eu ia pegá-lo pelos cabelos. E depois ia arrastá-lo pelo topete até o Rio, obrigá-lo a se ajoelhar na frente de Prestes e pedir perdão. Fétido, maldito espião!

A poeira da rua de terra, já seca àquela altura do ano, levantava-se em nuvens com o impacto das minhas passadas. Outras nuvens, feitas de fúria, obliteravam meus olhos e pensamentos. Quem seria o contato dele? Há quanto tempo vinha me enganando assim? Será que todos os alegados encontros com Silo nunca tinham ocorrido? Essa pergunta poderia ter sido respondida cinco minutos atrás, se a surpresa não houvesse me paralisado temporariamente. A surpresa e uma pontinha de esperança de que tudo não passasse de um grande mal-entendido.

Não. Ocultar minhas suspeitas fora a decisão certa. Ninguém aceitaria uma acusação daquela gravidade contra um cidadão soviético sem o respaldo de provas contundentes. Se eu apontasse o dedo, e os eventos se explicassem de outro modo, capaz de eu me encrencar feio. Denúncias falsas não acabavam bem.

E... ah, Deus, como eu queria que houvesse outra explicação.

O problema era a mentira. Não há no mundo veneno mais poderoso que ela. Inutiliza uma vida de verdade, elimina a confiança de uma tacada, e o efeito é quase sempre irreversível.

Fiz o caminho até o centro como se tivesse rodas nos pés. Silo ficara pouco tempo comigo, mas intervalo de almoço não é muito longo, e eu temia não encontrar mais meu falso marido. Pelo contrário: deparei de inopino com ele parado na frente da Prefeitura, um jornal nas mãos, mas a atenção visivelmente longe do periódico. Lancei-me depressa por uma rua lateral antes que ele me notasse também e fiquei espiando de lá com cautela.

Os olhos azuis e miúdos de águia relanceavam a todo momento do relógio de pulso para a esquina em frente. Quem ou o que quer que ele estivesse aguardando chegaria pela Rua Ulisses Caldas. Quando eu pensava em dar a volta na quadra para ter uma visão mais privilegiada do que se sucederia a seguir, notei Astrakhanov estremecer e vir em passos rápidos na minha direção; na hora em que eu ia fugindo, ele fez meia-volta e começou a andar casualmente para o outro lado. A movimentação na rua já era maior, as pessoas voltavam para seus trabalhos, e quase me impediram de ver o que ele pretendia fazer.

Astrakhanov apenas continuou andando. Ao passar em frente ao Atheneu, porém, relanceou o olhar para o colégio e seu rosto assumiu um ar misto de surpresa e reconhecimento prazeroso. Ele tirou o chapéu para alguém que estava do outro lado da rua, gritou um cumprimento. Tentei enxergar seu destinatário, mas de início não consegui: um carro me tirou a visão. Depois que ele passou, Astrakhanov atravessou a rua, ao encontro do cumprimentado.

Isto é, da cumprimentada. Era uma moça, e me parecia familiar. Rebusquei o rosto na memória, enquanto Astrakhanov trocava um par de frases com ela, que ria, corando levemente. Ele levantou o chapéu outra vez, e seguiu seu caminho para os lados do centro, enquanto a moça – provavelmente uma professora – cutucada pela colega, despertava do transe e corria para dentro do Atheneu.

Ambos já estavam fora de vista quando reconheci a garota. Sim, sim, aquela que derrubara sorvete nele na feira. Com que então os ingleses aliciaram uma professorinha! Será possível que a cena do sorvete fora uma armação? Não... O tenente certamente arranjaria uma desculpa mais convincente que não arriscasse arruinar o terno. E ele parecera tão alheado na ocasião... será que...

Mergulhei atrás de um poste ao ver Astrakhanov passar apressado de volta para a Ribeira. Pelo toque do sino da escola, ele já estava quase atrasado para o trabalho. Fuzilei com o olhar suas costas que ganhavam velocidade, conforme ele começou a correr. Que contato definitivamente estranho.

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