Capítulo 17 - Crítica e autocrítica

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Bom, ao que tudo indicava, nós não tínhamos chegado antes do toque de recolher.

Acontece que os colegas que eu havia escolhido para acompanhar eram dois irlandeses do Setor E, o setor de língua inglesa. E eles, até por uma questão cultural, tinham bebido mais do que eu. Suspeito inclusive que já chegaram à festa bêbados, especialmente considerando a limitação de vodca por lá. Tudo isso para dizer que eles não estavam dando a mínima para o horário e, provavelmente, eles foram os únicos que eu localizei porque também estavam atrasados.

Eu de fato não me lembro do que ocorreu naquela noite, mas, pelo que as testemunhas narraram, nós armamos um pequeno escândalo com o porteiro por não nos permitir entrar, e, de castigo, ele nos deixou esperando um bom tempo do lado de fora, até que um dos rapazes pulou o portão e foi chamar seu tutor ou algum responsável do Setor E, para que fossem forçados a abrir para nós. Fiquei agradavelmente surpresa com a minha própria sagacidade na parte do relato em que disseram que eu havia sumido antes de os responsáveis levarem os garotos para lavrar o registro da ocorrência.

Não que isso adiantasse muita coisa quando você morava na escola. Cedo ou tarde, acabariam me encontrando, e foi cedo.

Tudo isso me era relatado agora, a partir de um documento oficial e em tom casual, pelo próprio Tabanov, que viera à escola para o nosso julgamento, e estava sentado a uma mesa junto com diversas autoridades e líderes do Setor Inglês – dentre eles meu velho conhecido Jim Adams – e do Setor Latino-americano, diante das quais eu tremia em minha cadeira, colocada de maneira a encará-los.

Eu era acusada de participação em hooliganismo e de tentar escapar da disciplina, e tinha vontade de bater com a cabeça na parede por haver possivelmente posto a perder meu tão batalhado treinamento por causa de um maldito gole de vodca, pois não fora, realmente, mais que um gole. O que me dera na cabeça de aceitar, também? Se no Brasil eu não bebia nem cerveja!.. Não era adequado para meninas, dizia minha avó, e, na minha opinião, cheirava a vômito. Com um estômago tão abstêmio, eu devia ter previsto as consequências.

A sessão se dava a portas fechadas, e além de mim e dos julgadores, só Astrakhanov estava na sala, parado em pose militar junto à porta. Ele era corresponsável, como tutor do meu grupo, e pela cara, via-se que queria me matar. Cada um dos participantes no ato de baderna seria julgado em separado, e as testemunhas (basicamente o porteiro e um par de estudantes cujo quarto ficava perto e que alegavam ter ouvido a discussão) entravam, davam seu depoimento, e saíam novamente. Não tinham direito de ficar para assistir ao veredito.

Se eu pudesse, também não ficaria.

Forcei minha mente a voltar ao presente e sintonizar na voz suave do meu avaliador. Não se pode fazer uma boa defesa sem conhecer os detalhes da acusação. Pelo menos era o que costumava dizer o advogado do Partido, lá no Brasil.

– ...Temos de te dar um desconto por tudo isso ter acontecido nas comemorações do Dia da Revolução. Não posso pensar em um motivo melhor para se embebedar do que os rumos que a revolução tomou. Se fosse jovem e idealista, eu provavelmente me embebedaria também – ponderou Tabanov.

Antes que eu pudesse refletir nos possíveis sentidos dessa observação, ele emendou:

– Mesmo assim, temos que aprender que há outras formas de extravasar o contentamento, não é verdade? A arte, por exemplo, música, poesia. Esses outros divertimentos permitem manter o controle de si, e para um revolucionário de elite, isso é de suma importância.

Vi que toda a banca julgadora olhava para mim, provavelmente examinando qual seria minha reação àqueles comentários, e acenei depressa com a cabeça, concordando humildemente. Eles, ao que parece, ficaram satisfeitos, e Tabanov prosseguiu:

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