Capítulo 75 - A ratoeira

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Olá, pessoal!

Hoje, 19/01/19, é aniversário de uma pessoa muito especial, um grande amigo e um dos que mais me apoiam na escrita de "Dias Vermelhos", o castilhojac , e eu quis fazer essa homenagem a ele postando um dos capítulos mais importantes da Parte 2 justo hoje.

Parabéns, Arty! Espero que você seja sempre muito feliz, sua criatividade sempre floresça, e que você permaneça essa pessoa tão amável, inspirada e inspiradora. Feliz 22.

Sem mais delongas, vamos nos transportar para 23 de novembro de 1935 agora.

***

Natal relaxava, embalada em azul escuro, nas primeiras horas após o anoitecer. A cidade não compartilhava do alvoroço que testemunhara naquela tarde, em uma de suas casinhas periféricas. Também fingia não ver as sombras que deslizavam sorrateiramente de todos os lados em direção ao bairro da Cidade Alta, cruzando com uma massa de gente bem vestida que se deslocava para assistir a uma sessão solene no Teatro Carlos Gomes. Formatura dos alunos de Contabilidade ou outro curso almofadinha do tipo.

Alinhados como se também fossemos à cerimônia, eu e Astrakhanov passeávamos pela praça próxima ao quartel do 21° Batalhão de Caçadores, mais uma vez nos fingindo de casal apaixonado imerso nos olhos um do outro, quando na verdade nossos quatro ouvidos estavam sintonizados na caserna. Eu só esperava que as batidas estrondosas do meu coração não me impedissem de ouvir o sinal.

— ...já não era para ter soado? — arrisquei um olhar nervoso por sobre o ombro para o quartel.

Astrakhanov conferiu discretamente o próprio relógio de pulso.

— Não... ainda são sete e vinte e cinco — cochichou. Alteando a voz, continuou nossa prévia conversa: — E mais tarde podemos ver "Quente como pimenta". Ouvi dizer que hoje é a última vez que passa no Cine São Pedro.

— Hm... acho que prefiro "O preço do silêncio" — respondi, sem conseguir impedir meu pescoço girar de novo para onde não devia. Astrakhanov pegou meu queixo e voltou meu rosto para o dele com firmeza.

— Como quiser, querida — respondeu. E, entredentes: — Se acalme.

Concordei com a cabeça, e firmei o olhar no passeio à nossa frente. Era muito difícil me manter andando em linha reta, no passo tranquilo do meu disfarce, quando eu me sentia comprimida entre duas forças descomunais. O medo, quase pânico já, estimulava minhas pernas a fugir. Ao mesmo tempo, uma espécie de excitação me empurrava inteira para os lados do quartel, instilando gotas de adrenalina em minhas veias como um tira-gosto.

"De onde isso veio tem muito mais", sussurrava a Revolução.

Eu consegui me segurar no percurso, mas não fui capaz de me forçar a manter uma conversa. Os pensamentos me assaltavam como se eles mesmos formassem um batalhão coeso dedicado a me confundir, cada um atirando para um lado. Meu cérebro trabalhava de forma particularmente perspicaz, pois não lançava apenas imagens ou frases: resgatava odores, sons e sensações, até alguns que eu cria sepultados para sempre. A risada esquisita da irmã mais nova, o cheiro do grão de café no pé, o toque dos braços delgados de Pavel, neve derretendo na língua, os cantos da boca da minha mãe abaixando quando ela ficava brava... era engraçado, porque a expressão se formava de imediato, ela nunca conseguia disfarçar. E pensar que, dentro de instantes, uma bala poderia me privar para sempre de todas essas coisas.

Bem, e eu já não estava privada delas de qualquer jeito?

Esta onda de pensamentos foi rapidamente sucedida por outra, dessa vez sobre o futuro. Mas não sobre o futuro glorioso pós-insurreição — quem dera. Lembrei-me dos relatos que ouvira em Moscou sobre a Revolução de 1917. Alguns detalhes bem crus, que eu tentava banir da mente sempre que pensava no nosso levante, mas que, na iminência dele, era impossível contornar. Detalhes técnicos, feridas, amputações e mortes. Não só as que eu veria, mas as que eu, eventualmente, causaria...

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