Capítulo 11 - Epístolas não passarão!

526 110 495
                                    

Tudo fica menos dramático à luz do dia, e, na manhã seguinte, já não havia questionamentos grandiosos na minha cabeça sobre o destino do movimento comunista no Brasil. Havia, sim, a realidade de um intenso programa de treinamento, do qual eu precisava me manter à altura, já que desistir – ou ser expulsa por rendimento insuficiente – não estava nos meus planos pessoais.

O nível de exigência e a quantidade de matéria eram grandes.

Enquanto no programa prático tínhamos apenas aulas com professores e tutores, o programa teórico era, até certo ponto de nossa responsabilidade. Havia matérias pré-definidas, e além do conteúdo mínimo coberto nas salas de aula, uma bibliografia obrigatória, e disciplinas extras, direcionadas aos problemas específicos dos nossos países e regiões de origem, que cabia a cada setor decidir como ia estudar. Tínhamos liberdade para visitar o Instituto de Marxismo-Leninismo, a Biblioteca Lênin, e ainda outras instituições do mesmo tipo, na busca de material para elaborar os ensaios e seminários requeridos pelos professores. Também podíamos consultar os tutores e os colegas veteranos para tirar dúvidas, meditar, fazer grupos de estudos... desde que entregássemos os relatórios nos dias determinados, e nas especificações predefinidas.

Assim, os dias se passaram numa sucessão veloz de treinamentos, aulas, estudos dirigidos, palestras, reuniões, exercícios físicos e rotina diária, e, quando dei por mim, já era quase novembro e a primeira neve começava a atapetar as ruas de Moscou.

O frio era simplesmente uma coisa absurda, mesmo com os bem-acabados uniformes que tínhamos recebido, e que nos protegiam do maior impacto; ouvir falar em zero graus e temperaturas negativas é uma coisa, senti-las na pele, é muito diferente.

Ainda assim, isso não me impedia de ter vontade de correr lá para fora e saltar feito uma criança nos montes de neve, fazer guerras de bolas de neve, bonecos de neve, e ficar dançando na rua de boca aberta, esperando alguns flocos caírem na minha língua. Obviamente não me dariam licença para fazer isso, e para falar a verdade, eu jamais pediria; não era o tipo de comportamento que se esperaria de alguém que está sendo treinado para virar uma guerrilheira de elite.

Mas era a primeira vez que eu via neve na vida, e esse acontecimento não poderia deixar de interromper o fluxo de dias semelhantes que eu estava vivendo, pois era uma notícia, o tipo de coisa que você contaria sem falta a alguém que te perguntasse pelas novidades.

E de repente eu lembrei que havia muito tempo ninguém me perguntava pelas novidades.

Natural; quem perguntaria? Minha única comunicação, ultimamente, era com os colegas, tutores e supervisores de treinamento, e eles estavam ali vivenciando as mesmas experiências que eu. Além disso, por mais que se tivesse formado certa camaradagem na minha turma, curiosamente – talvez pelo sigilo em que vivíamos envolvidos, sem saber sequer os nomes reais uns dos outros – não nascera aquele tipo de intimidade que eu havia criado num único dia com um completo estranho em Leningrado.

Ex-completo estranho: Pavel já era meu amigo a ponto de eu sentir saudades suas quase que com uma dor física.

E então me peguei pensando que amizade é uma coisa que precisa ser cultivada, para que não morra. Eu estava no jantar enquanto tecia essas considerações, e um medo amargo no fundo do estômago me fez até afastar o prato. E se ele já tivesse me esquecido? Com o pouco contato real que tivemos, a essa altura era bem possível.

Lembrei que tinham mencionado a possibilidade de enviarmos cartas quando nos explicavam as regras da escola, e resolvi a fazer o que estivesse ao meu alcance para não virar um mero encontro casual do passado, aos olhos do komsomolets tranquilo.

Dias VermelhosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora