Capítulo 30 - O Couro Cabeludo

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No refeitório do Complexo Têxtil de Orekhovo-Zuevo, Svetlana Vassilieva tentava me convencer de que o seu irmão estava apaixonado por mim.

– De onde ela é? Onde estuda? O que gosta de fazer nas horas vagas? Sério, Liza, ele não para de perguntar sobre você – ela disse, enfatizando a afirmação com um gesto. – Ficou pior de umas duas semanas para cá.

Eu sabia bem o que tinha acontecido havia duas semanas. A resistência de Astrakhanov, sua postura militar, e o fato de eu ter entrado num veículo oficial certamente atiçaram a curiosidade de Ivan. E eu que já estava com esperança de que ele houvesse esquecido sua promessa de Ano Novo.

Forcei uma risada amarela.

– É porque eu sou novidade, simples assim – eu disse, bebendo meu suco. – Uma pessoa diferente das que ele está acostumado a ver – tentei.

– É... não. Meu irmão é curioso por natureza, não nego, mas dessa vez está demais.

Eu girei os olhos para o teto.

– Sabemos que você prefere os altinhos – Lucia cutucou – mas o Vania não é nada mal. Ele foi um bom namorado.

Continuei com a cara no copo de suco mais um momento, até me assegurar de que não estava vermelha, e finalmente pousá-lo na mesa.

– Vania é uma graça – falei – mas vocês estão imaginando coisa. Confiem em mim – repeti, mais enfaticamente do que seria prudente, talvez.

– Sveta lamenta muito que você não abra mão do seu barba-ruiva – Lucia falou, e Sveta mostrou-lhe a língua. Lucia, que estava sentada ao meu lado, fez dois dedos andarem pelo meu braço até meu ombro, para chamar minha atenção. – Você nem nos contou sobre seus idílios românticos em Leningrado – se queixou.

Eu dei de ombros.

– Contei o que havia para contar – falei. E era verdade. Quase. Tinha omitido detalhes como a noite olhando as estrelas e outras coisas, mas... Certo, confesso; eu tinha omitido tudo que era relevante, mas não me sentia confortável para falar no assunto.

– Como vocês são chatas – reclamou Lucia. – Uma fica de mistério, a outra só me convida para ir na igreja. Tenho que arranjar novas amigas.

– Você continua indo à igreja, Sveta? – eu perguntei, casualmente. Lembrei que ela tinha desenvolvido esse hábito no ano corrente. Ela confirmou com a cabeça, mas pôs um dedo sobre os lábios. Não era um costume bem-visto ali, e preferia que não falássemos dele em voz alta. – Aquele padre que canta bem ainda está por lá? – perguntei. Ela confirmou de novo, com os olhos no prato. – Vou arranjar um tempo para ir com você qualquer dia – prometi.

O sino tocou, e nos dirigimos preguiçosamente aos banheiros, para higienizar as mãos, e de volta às nossas máquinas. O trabalho no começo da tarde sempre levava uma meia hora, pelo menos, para assumir o mesmo ritmo da manhã, pois as energias de todas nós tinham que ser partilhadas com a digestão do almoço. O calor que estava fazendo – afinal, ainda estávamos em julho, mesmo que no fim – desacelerava tudo um pouco mais.

Logo, porém, a rotina tomou conta novamente. As mulheres mais velhas lá da fileira da frente começaram sua cantilena de músicas populares. Eu acompanhava baixinho, quando elas cantavam alguma que eu tivesse aprendido, nem que só o refrão. Gostava daquelas músicas. Focos de conversa surgiram aqui e ali. No meio da normalidade da fábrica, porém, ouvimos a porta que dava para o setor administrativo se abrir, e a voz fanhosa da secretária chamou:

– Camarada Elizavieta Shedritcheva, favor se apresentar na administração.

Ergui a cabeça, espantada. Como de costume, me pus a imaginar o que eu poderia ter aprontado dessa vez, e até esqueci de atender ao chamado, de modo que a mulher repetiu, agastada:

Dias VermelhosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora