Capítulo 5 - Jazz e Fumaça

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(Na mídia do capítulo você encontra um pouco de jazz soviético das décadas de 1920-30 como sugestão de trilha sonora).

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Eu nem percebi que estávamos chegando ao clube de jazz até que estivéssemos literalmente em cima dele. Mas, dessa vez, não foi culpa da minha distração: o som do saxofone que escapava do porão daquele casarão comum era muitíssimo tênue. Eu seguiria andando sem notá-lo se Pasha não segurasse meu pulso, apontando para uma escadinha imperceptível perto da parede, que dava acesso ao subsolo.

O interior do estabelecimento, todavia, era exatamente como eu tinha imaginado: pequeno, mal iluminado, e tão lotado de pessoas e de fumaça que mal se via a banda lá na frente, e a música parecia vir do além. A acústica do local, porém, era excelente, e o jazz instrumental mergulhava-o numa atmosfera quase mística. Movendo-se, ao que parecia, instintivamente, Pasha encontrou uma mesinha vazia e, sem ter soltado meu pulso, conduziu-me para lá.

A mesa em questão era pequenina, em proporção ao lugar, mas alta e redonda, ladeada por dois banquinhos igualmente altos, que nós ocupamos. Conseguimos, com isso, ficar abaixo da nuvem de fumaça, e enxergar os rostos um do outro. Pavel sorria, aquele sorriso que, a essa altura, já me era familiar, e que dessa vez se devia, certamente, à satisfação de se encontrar em um lugar conhecido e apreciado.

E agora, isso era um encontro ou não? Em qualquer caso, melhor eu arranjar um assunto, porque ficarmos ali nos encarando em silêncio estava começando a me deixar sem jeito.

- Quem é Pavlik Morozov? ­- fiz a primeira pergunta que me veio à cabeça, e obviamente não foi a melhor escolha de assunto, pois o sorriso despareceu do rosto dele.

- Imaginei que você ia perguntar isso - Pasha observou, depois de um profundo suspiro. - Pavlik foi um menino difícil de julgar do ponto de vista moral - ele começou, após pensar um momento. - O pai dele era conselheiro no soviete da vila de Guerassimov, e estava usando o posto para fins pessoais, pegando para si bens confiscados, especulando com documentos para as pessoas reassentadas, em suma, aprontando. Quando o pegaram, Pavlik testemunhou contra ele no tribunal. Veja só, ao que parece o pai batia nele, nos irmãos e na mãe, e chegou a abandoná-los e ir morar com outra mulher. Então é possível que o moleque tenha querido se vingar, ver o pai punido, ou sei lá, mas a atitude dele não foi muito bem recepcionada, entende? As pessoas encararam como uma traição, afinal de contas, ele participou num processo contra o próprio pai. Depois ele se alistou nos Pioneiros e... bom, lutou pelo comunismo, mas não da melhor forma, digamos assim. Ajudando a descobrir e denunciar pessoas, perseguindo os kulaks, com um fanatismo até... arriscado. Ele deve ter acumulado alguns inimigos, imagino. Em resumo, o menino foi assassinado em setembro do ano passado - Pasha apressou o fim da história, falando mais rápido agora, como se o assunto o perturbasse. - Ele e seu irmão mais novo, que parece que assistiu o crime. Dizem que foi o avô. Um caso realmente repugnante - e uma leve náusea chegava a transparecer em seu rosto, ao falar disso. - Pobre garoto.

- Pobre garoto - ecoei, espantada, com os olhos vítreos, atrás dos quais passava toda a vida de Pavlik Morozov, moldada com os timbres dramáticos da minha imaginação. - Homenagearam a memória dele, eu imagino? - perguntei, num sussurro solene. Pavel, os braços cruzados sobre a mesa, me lançou um olhar ilegível.

- Oh sim - ele respondeu, com uma nota nitidamente irônica. - Ele é o mártir dos Pioneiros, agora. E eles são estimulados a seguir o exemplo dele e denunciar seus pais, avós, professores, vizinhos... e todos que suspeitem que sejam inimigos do sistema - concluiu, incapaz de ocultar a crítica em sua voz, agora.

Talvez para disfarçar esse início de explosão, ele me deu as costas, a fim de procurar e chamar o garçom. Agora faziam sentido para mim a brincadeira - sem graça - do irmão de Pasha, e o mal-estar que ela tinha causado na família. E também se adequava perfeitamente a definição que Pasha fizera do garoto como "um menino difícil de julgar". Se por um lado era louvável que as crianças fossem educadas para defender um sistema que lhes era mais benéfico que os demais sistemas político-econômicos já praticados, não seria um pouco demais colocá-las contra os próprios pais? Pelo que eu sabia, esposa e filhos não costumavam ser obrigados a depor em tribunais, justamente para proteger vínculos afetivos familiares. Ou esses vínculos eram mito burguês? Já se tinha cantado essa bola, mas eu nunca conseguira assimilar a afirmação, ou mesmo considerá-la um conceito fundamental do comunismo. Até porque eu idealizava o comunismo como a humanidade vivendo em harmonia e igualdade como uma grande família feliz, e não se obteria esse resultado destruindo o conceito de família.

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