Capítulo 43 - No Transatlântico

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Stuart, Ana Amélia. Sobrenome de solteira: Peixoto Alvarenga. Brasileira. Natural de Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais. Vinte e quatro anos. A John Theodore Stuart deram trinta e poucos – não seria crível que uma companhia ferroviária enviasse como seu representante internacional um rapazote com menos que isso.

Ele pigarreou, para que o funcionário da companhia naval devolvesse meu passaporte, que já retinha por tempo demais, olhando alternadamente para mim e para a foto, e congelando-me mais do que o frio londrino seria capaz. Ora, raios, aquela era uma foto minha, original!

O homem percebeu sua indelicadeza e, pedindo desculpas pela distração, entregou meu documento e nos desejou uma excelente viagem. Eu e John caminhamos alguns metros com ar arrogante, depois nos entreolhamos, e soltei o ar vagarosamente.

Meu coração ia ficar bem exercitado se disparasse assim toda vez que eu tivesse que apresentar o passaporte.

Tirando esses sustos, todavia, não era tão difícil manter o disfarce. Astrakhanov tivera que aprender detalhes sobre trens e ferrovias, para o caso de alguém indagá-lo a respeito dos negócios de John. Eu, todavia, era apenas a esposa, e ainda por cima nativa de um país selvagem. Para corresponder aos estereótipos dos demais a meu respeito bastava me comportar como se fosse burra e fútil.

Acabei não comprando uma piteira, e adotei como álibi que Anita teria algum problema de saúde que a impedia de fumar. O que eu comprei antes de embarcar foi um estoque de revistas femininas, e me ocupei com um par delas na primeira tarde no navio. Não acrescentaram muito ao meu patrimônio intelectual além da informação de que o veludo estava em alta para aquele inverno, assim como os chapeuzinhos planos, ao estilo de boinas. Fiquei meditando se eu possuía alguma roupa de veludo; seria útil para compor o visual de esposa decorativa durante os jantares.

Eu achava que, por estarmos disfarçados de passageiros da classe intermediária, não receberíamos convites para nos juntarmos à mesa de ninguém e poderíamos comer sossegados, só na segura companhia um do outro. Ledo engano. Logo na primeira noite no navio, mal havíamos nos acomodado quando o maître se aproximou com um casal – um velhote e uma moça loura – e perguntou se nos importávamos em comungar com eles durante aquela refeição.

Sim, nos importávamos, mas aquilo não era realmente um pedido. O navio estava levando o total da sua capacidade de passageiros naquela viagem, então todos meio que foram obrigados a compartilhar suas mesas.

Enquanto eu imaginava o que tantos ingleses estariam indo fazer no Brasil àquela época do ano, o casal se acomodou à nossa frente.

Eles nos cumprimentaram polidamente. Eram ambos simpáticos, e, infelizmente, do tipo que parecia louco para puxar assunto. O homem tinha os cabelos grisalhos, já quase brancos. Devia estar na casa dos cinquenta e tantos. Ele não era exatamente gordo, mas tinha uma barriga rotunda que, envolvida pelo fraque, lhe dava um ar bonachão. A mulher devia ter uns trinta e poucos, mas vestia-se e pintava-se para parecer mais jovem. Mal se percebia as rugas no canto da boca, debaixo de várias camadas de pó. E, veja só, ela carregava uma piteira.

– Nós ingleses não sabemos mais apreciar os prazeres da nossa própria terra – o velhote comentou, já quando estava se acomodando, para impedir que um silêncio incômodo recaísse sobre a mesa. – Olhem só quantas andorinhas fugindo para o sul – brincou, indicando com o queixo o salão lotado.

– As andorinhas são animais espertos – respondeu Astrakhanov, neutro, adicionando um creme a seu prato de sopa. – Sabem aproveitar o melhor de dois mundos.

Nosso convidado involuntário soltou uma gargalhada. Acho que ele riria de qualquer coisa que nós disséssemos; o objetivo era quebrar o gelo.

– É uma boa maneira de pensar – aprovou, arrumando o guardanapo em seu colo. – Eu nem posso julgá-los, pois estou fazendo o mesmo. Fica difícil resistir, uma vez que você tenha conhecido o Rio de Janeiro. Já esteve lá antes, Sr....?

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