Capítulo 54 - Viagem ao Centro da Caatinga

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Era obviamente inexequível a intenção de Astrakhanov de concluirmos nossa missão conjunta com Silo até o final de semana.

A complexa tarefa de encontrar alguém que soubesse onde estava nosso alvo e topasse nos levar até ele ficou a cargo de Caetano Machado, que era mais entrosado com os sertanejos da região. E até ele encontrou dificuldades. Perguntar às pessoas se elas sabiam por onde andava o bando do Lampião acarretava duas reações possíveis: uma cusparada, uma persignação e um raivoso "que o tinhoso o carregue!" ou uma cusparada, uma persignação e um "tá me achando com cara de cagueta?!"

As pessoas deviam estar com os nervos muito aflorados para confundirem Caetano com um policial.

A busca seguia sem resultados e nos encalhava em Pernambuco. Para evitar problemas com a Great Western Brazil, Silo arranjou um médico simpatizante para assinar um atestado dizendo que John Stuart estava com caxumba, e recomendando-lhe quinze dias de descanso.

Minha consciência doeu um pouco de apresentarmos um atestado falso, mas aí eu lembrei que todos os nossos documentos eram falsos, de qualquer forma, então tanto fazia. Aliás, o próprio trabalho de John era de fachada, John era de fachada, e, portanto, o atestado estava muito adequado a toda essa farsa. Astrakhanov só protestou por ser justo caxumba a doença. O médico explicou que era proposital: assim os homens da empresa quereriam manter distância dele, para evitar contaminação.

Dito e feito. Encaminhamos o atestado e no mesmo dia recebemos um telegrama desejando melhoras e garantindo que ele não precisava (e nem devia) se apresentar para o trabalho até que estivesse completamente curado (em maiúsculas).

Com essa questão resolvida, pudemos relaxar, e aproveitei a folga para combinar com Silo as diretrizes do jornal que rodaríamos. Numa noite, ele nos apresentou a um camarada que cuidaria da nossa "gráfica" ilegal — isto é, que operaria o mimeógrafo e esconderia as cópias prontas até que fossem distribuídas. No dia seguinte, saímos para comprar uma máquina de escrever.

Confesso que esse foi um momento bem prazeroso pra mim. Eu tinha feito uma breve cadeira de datilografia na escola; era uma disciplina optativa, para que aquelas de nós que não conseguissem colocação como professoras pudessem tentar a carreira de secretária. Eu não era uma datilógrafa muito boa, escrevia catando milho, e após tanto tempo sem chegar perto de um daqueles mecanismos, estava enferrujada. Apesar disso, ouvir os estalos rítmicos das teclas e o "plin!" do rolo das folhas chegando ao fim me dava uma inexplicável sensação de tranquilidade.

Assim, no dia seguinte à aquisição da máquina, eu acordei cedo, mas permaneci no quarto, a despeito do dia lindo que fazia lá fora, divertindo-me com o equipamento novo. Usei algumas folhas do pacote de papel ofício que tínhamos comprado para datilografar uma missiva para minha mãe, alguns poemas que sabia de cor e outros fragmentos de texto. Redigi até uma carta para Pavel, aproveitando que Astrakhanov não estava prestando atenção, pois continuava absorvido nas suas leituras sobre trens, trilhos e bitolas. Eu não pretendia enviar, até porque estava em português e Pasha nada entenderia, mas era uma tentativa de amenizar a culpa pela promessa de escrever, até agora descumprida, e que eu dificilmente poderia cumprir.

Dei fim em todos os meus rascunhos e voltei ao meu posto após o café da manhã, agora a sério, para praticar a colocação da matriz no rolo da máquina de escrever. O combinado é que eu já mandaria o jornalzinho datilografado na matriz, para agilizar sua impressão. Não era fácil encaixar as folhas de modo que não ficassem tortas ou que a parte roxa borrasse e impedisse a leitura. Eu ainda batia cabeça planejando a diagramação dos nossos textos quando uma buzina soou lá fora, seguida de um chamado relativamente discreto na voz grave de Silo:

Dias VermelhosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora