Capítulo 29 - Sobre Códigos e Café

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– Faz bastante tempo que eu estou longe, mas ainda sinto falta.

Era o meio de julho. Na União Soviética, o verão ainda estava em seu pico, mas eu e Carmen Orestos tomávamos chá, cuidando para não derramar o líquido aromático nas dezenas de folhas espalhadas e livros abertos em cima da mesa.

Ela falava do chimarrão. Carmen era gaúcha, como eu tinha descoberto nos nossos primeiros contatos, graças ao sotaque forte preservado. Estava na URSS havia mais tempo que eu; viera em 1931 e não morava na ELI, mas com sua família, em um apartamento próprio, alugado. Eles tinham emigrado em massa. Carmen falou vagamente sobre perseguição, mas não me disse de quem, nem por quê. Nada demais, afinal, eu ainda era uma estranha.

– Eu também sinto falta. Não do chimarrão, mas do café. Do Brasil. Da comida, das pessoas. Até das picuinhas da direção do Partido. Até hoje recebi apenas uma carta da minha família. Navios são horrivelmente lentos – eu respondi, pousando minha xícara perto do dicionário de russo-português.

– Sempre há o correio aéreo – apontou Carmen.

– Só funciona dentro do país – retruquei. – Pelo menos no Brasil é assim.

– É verdade. Confesso que tinha esquecido. Ainda estavam começando a implantar o sistema quando eu saí de lá. Como você traduziria "narkompros"?

– Comissariado do Povo de Educação. É o que significa a sigla, não é?

– Estou vendo que esse texto vai de duas páginas para quinze – Carmen observou, sacudindo a cabeça, enquanto anotava a palavra na nossa tabela de padronização de jargão.

Estávamos trabalhando na tradução de alguns textos curtos do Camarada Lenin, e do livro Salário, Preço e Lucro, do Marx, mas eu traduzia para o português, e Carmen para o espanhol: seriam os textos dela que utilizaríamos em sala de aula. Usávamos as traduções para russo, francês e inglês como base. Considerando que Marx não escrevia em nenhuma dessas línguas, mas em alemão, a chance de dar confusão era gigante, e tentávamos evitar equívocos de tradução consultando várias versões e uma quantidade enorme de dicionários, e confeccionando nossos próprios sistemas de organização. A tabela de padronização de termos técnicos, já extensa, fora necessária por causa do grande número de palavras e siglas novas, próprias dos últimos quinze anos de governo soviético, que ainda não constavam dos dicionários que possuíamos.

– Também não recebi muitas notícias do Partido – eu disse, retomando a conversa após meia hora de absorção no trabalho. – Nos enviam uns poucos jornais de vez em quando, e Suarez, quando veio, falou da chegada anunciada de um novo instrutor enviado da Internacional Comunista, isso ainda no ano passado. É estranho não saber o que está acontecendo no Partido. Parece que me cortaram as raízes. Você não se sente assim? – perguntei.

– Eu não sou filiada – Carmen disse, após um momento, com a voz tranquila, e os olhos em seu trabalho. Os meus, por outro lado, se arregalaram.

Como assim? Como uma pessoa não filiada ao PCB podia estudar na ELI? Talvez tivesse entrado pela cota da Juventude Comunista... Mas não, José Maria e Jaime já eram da UJC, não devia ter muitas vagas mais. Minha língua coçava de vontade de perguntar, mas sabia que eu não ia obter respostas, então fiquei quieta.

– Mas eu sei algumas coisas sobre o que está acontecendo por lá – ela continuou, quando eu já não esperava mais nenhuma palavra. – Foi ordenada uma purga na liderança.

– Mais uma? – Espantei-me. Havia uns três ou quatro anos, antes de eu ingressar nas fileiras do PCB, já tinha ocorrido uma reformulação dos quadros, e muitos cabeças foram expulsos por tendências trotskistas ou socialdemocratas.

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