Capítulo 14 - Siglas Soviéticas

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O terceiro elemento, cujas feições foram se tornando mais claras a medida que eu me aproximava das garotas, era um rapaz. Baixinho, apenas uns dez centímetros mais alto que eu, relativamente forte, a cara redonda e simpática, com traços regulares, encimada por cabelos cor de palha, e com um par de olhinhos castanhos encravados nela.

Ele também me viu primeiro que as meninas.

– Olha, acho que é a estrangeira de que vocês falaram – disse, apontando para mim sem nem uma gota de discrição, pelo que levou uma cotovelada e um olhar feio de Sveta. Eu não pude me impedir de rir, apesar de uma parte minha estar decepcionada por não ter conseguido sustentar minha identidade russa nem por vinte e quatro horas no mundo exterior.

Muita ingenuidade minha achar que realmente tinha enganado alguém.

Depois que terminaram de bronquear o rapaz e quando eu finalmente as alcancei, as garotas me sorriram, e Lucia perguntou onde eu tinha estado. Acenei brevemente em direção à igreja, e ela fez uma expressão entendida, do tipo "sim, todos os estrangeiros gostam de visitar aquilo", e, provavelmente em sequência a esse pensamento, apontou com o polegar para o Mausoléu atrás de si:

– Quer entrar para ver o cadáver? – propôs.

– Lucia! – repreendeu Sveta, com um olhar assustado para os guardas vermelhos em pose rígida não muito distantes da gente, enquanto o rapaz que as acompanhava caía na gargalhada.

– Que foi? Ele está morto mesmo, não está?

– Mas é o Camarada Lenin!

– O Camarada Lenin morto. Eu não disse nenhuma mentira – ela encolheu os ombros. E, antes que elas embarcassem em mais uma discussão interminável ao estilo da do almoço de quarta-feira, eu interrompi:

– Hoje não, quem sabe outro dia. Temos que ver o local das paradas, e vocês querem ir comprar um vestido, se eu não me engano.

­– Não está perdendo nada, moça – me disse o rapaz, antes que as garotas falassem qualquer coisa. – Posso te dizer com autoridade, porque eu já fui, três vezes. Mas isso é só porque eu tenho uma curiosidade mórbida.

Svetlana cutucou-o mais uma vez.

– Não dê atenção para esse bobo, Liza – ela falou, com uma careta para o louro, que a devolveu. – Esse é meu irmão Vania, e ele não fala nada com nada.

Eu sorri para o rapaz e estendi-lhe a mão, que em vez de apertar, ele beijou.

– Encantado. E a descrição foi acurada; realmente, não leve a sério o que eu falo – aconselhou. Curvou-se, então, e cochichou ao meu ouvido – Mas eu entrei mesmo três vezes no mausoléu. Depois te conto a história tod...

Sveta puxou-o para trás pelas costas do casaco. A cor do cabelo dos dois era a mesma, talvez a dela tivesse um tom levemente mais escuro, mas eles não eram parecidos. Nem fisicamente, nem na personalidade, pelo jeito. Era muito engraçado vê-los juntos por causa da diferença de altura: Svetlana era uns bons centímetros mais alta que o irmão.

– Eu sei o que você está pensando – ele me disse, quando me pegou a observá-los, com cara de riso – e já fui muito caçoado por esse motivo, mas posso te garantir que passei da fase em que ligava para isso – finalizou, alçando o nariz com orgulho. – O que importa é o conteúdo, e o meu é muito melhor que o dessa daí.

– Ai, chega, Vania, nem eu te aguento às vezes – Lucia entrou na conversa e me resgatou, pegando-me pelo braço e me arrastando uns passos à frente dos dois irmãos, que continuavam a se bicar baixinho. – Você lembrou bem, temos roupa ou tecido para comprar, então é bom nos apressarmos. Sobre o local, bem, basta olhar em volta. Está vendo aquele palanque ali perto do muro do Kremlin? Sim, lá vão ocorrer alguns discursos e apresentações. Mas não sei se o Camarada Stalin vai discursar nesse palanque ou no da Praça da Revolução esse ano. Você quer ir até lá? Não fica longe, podemos ir, mas antes eu gostaria de passar no GUM para ver se tem alguma roupa boa para a Sveta lá.

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