Capítulo 60 - A Caravana

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Seguia pela rua me sentindo culpada, como sempre que voltava do correio.

Culpada pelas cartas não enviadas que eu prometera remeter. A bem da verdade, eu tive tempo de avisar minha mãe de que desapareceria por um tempo. "Vou fazer uma volta ao mundo", inventei. "Acho que nem tem correio em todos os lugares, então posso ficar sem escrever por longos períodos". Ainda assim, "longos períodos" não queria dizer "para sempre".

Bem, se eu morresse no levante, pararia de escrever para sempre, inevitavelmente. Não acho que, uma vez no outro mundo, eu seria do tipo de alma que dizem que perde tempo ditando histórias para o povo daqui. Uma vez morta, adeus, me esqueçam. E como havia probabilidade de morrer, talvez minha dramática mãe — que interpretava o silêncio como passamento — fizesse bem em ir se acostumando à ideia.

Com Pavel fora ainda pior. A despedida face a face me desnorteara. Ao invés de avisar que não poderia dar notícias, na pressão do momento, fiz promessas que, nós dois sabíamos, eram incumpríveis. Nós dois sabíamos, mas isso não anulava minha dívida.

Meu pesado suspiro disputou espaço com o chilreio dos passarinhos. A cada dia eu descobria uma dimensão nova dos preços da Revolução. A deterioração das minhas relações com as pessoas que mais significavam para mim era apenas outra pedra no muro que eu tinha que saltar para chegar ao meu objetivo.

Que a certeza da nobreza desse objetivo me servisse de catapulta.

Pensando nele, puxei o pensamento das cartas que não podia enviar para aquelas que tinha nas mãos. Devia ser algo muito importante, ou Stuchevski não se arriscaria a enviar outra carta longa daquelas, no código do livro. Após a primeira carta, ele mandara apenas telegramas curtinhos na criptografia ordinária de grupos de cinco letras. Dessa vez a lista não continha palpites para o jogo do bicho, mas uma encomenda de uniformes escolares, em quantidade suficiente para vestir toda a população infantil de uma cidadezinha: as cifras, que, supostamente, eram as medidas das crianças, cobriam várias páginas.

Passei nossa cerquinha ainda intrigada, folheando a carta e tentando imaginar qual seu assunto. Só ergui a cabeça para responder o "Bom dia" de Dona Ermenegilda.

– Foi boa a festa ontem, hein?

– Uma maravilha, dancei até doer os pés, meu marido bebeu todas e voltamos altas horas da noite – respondi, contendo com dificuldade um sorriso cruel ao ver o horror se formando no rosto dela. Estava apoiada com o queixo no cabo de uma vassoura de palha, e até se endireitou, assumindo um ar de dignidade. – E a senhora, aproveitou bem a quermesse?

– Eu só dei uma voltinha para olhar as bancas, não tenho mais idade para essas coisas.

– Ah, e na missa, a senhora estava? Achei tão interessante o discurso daquele padre, tão inovador, tomara que ele pregue mais – e, presenteando-a com um sorriso que se pretendia encantador, dei-lhe as costas e entrei em casa, rindo abafado sozinha.

Fui pega de surpresa ao adentrar a cozinha e ver que Astrakhanov ainda estava ali.

– Você já não devia ter ido trabalhar? – perguntei, consultando as horas no relógio de cuco.

– Sim, mas estava te esperando – ele confirmou, se levantando de trás da mesa, os olhos levemente inchados e fazendo caretas a cada palavra que eu dizia mais alto. Pela minha única experiência com ressaca, sua cabeça devia estar latejando como o inferno.

Bem feito.

– Me esperando por quê? – estranhei. Ele careteou novamente, mas abriu os olhos e fitou-os no meu rosto, sério.

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