Acordar, no fim das contas, não era tão ruim.
As coisas ficam mais claras após uma noite bem dormida. Uma semana de... paixão intensa (ou o mais próximo disso que eu já tinha chegado) mexera com a minha cabeça e tornara tudo um pouco mais dramático do que precisava ser. Era possível fazer aquilo funcionar. Eu e Pasha, quero dizer. Eu não estava sendo expulsa do país nem nada, e ainda tinha dois meses para pensar em como faria para me deixarem ficar ali.
Além disso, houvera um pedido de casamento. Retirado, é verdade. Retirado, precipitado, acovardado, disfarçado. Mas ainda era um sinal de que um segundo podia vir, claro e consciente dessa vez.
E a cada dia eu tinha mais certeza de que eu diria sim.
Imagens, distantes desde a minha adolescência, haviam começado a aparecer na minha cabeça, divagações no meio de aulas e em outros momentos inoportunos. Bebês. Loirinhos ou ruivinhos de olhos castanhos, ou morenos de olhos cinzentos. Menininhas parecidas com Dúnia. Panelas. Comida caseira. Até um vestido de noiva e, sim, cheguei a sonhar com um casamento. Bem simples, mas havia até um padre, e era Kiril.
E o mais estranho é que essas imagens não me faziam torcer o nariz. Elas me davam certa paz e uma sensação gostosa na boca do estômago. E daí se eu não participasse da Revolução no Brasil? Ninguém sabia quando ela ia acontecer, mesmo. Eu podia passar uns anos com Pasha, e quando houvesse sinais reais de agitação no meu país, partiria. Deixaria as crianças com Pavel, enquanto isso, se crianças houvesse; ele seria um bom pai.
Ou simplesmente criava os meus filhos ali, sob o socialismo, e eles já voltariam ao Brasil plenamente formados para construir o regime lá.
Havia várias opções para longo prazo, mas no momento eu tinha coisas mais imediatas para resolver.
– Sim, eu acho que é possível – Astrakhanov disse, apoiando o queixo nos indicadores, com os cotovelos descansando sobre a sua escrivaninha. – Claro que haverá um bocado de burocracia – ponderou. – Eu posso no máximo dar um visto no pedido, e um parecer favorável, se for requisitado. É Tabanov com a banca dele quem decidirá, depois de avaliar suas notas, disciplina, sua performance de modo geral no curso básico. Provavelmente também vão pedir o parecer do seu Setor.
– Quanta gente para opinar – resmunguei, desanimada.
Astrakhanov se levantou, começando a andar pelo quarto, com as mãos atrás das costas. Ele tinha essa mania.
– Eu não consideraria isso ruim – comentou, distraído, olhando algo pela janela. Então se voltou para mim. – Você traduz para eles, não é? Provavelmente o Setor se mostrará favorável à sua permanência. Quanto mais tempo você permanecer aqui, mais material poderá lhes fornecer, e eles precisam.
Fazia sentido. Acenei em aprovação. Astrakhanov continuou:
– E, por fim, mas de vital importância, tem que haver a concordância do seu Partido. Tecnicamente seria necessária uma recomendação deles, mas dificilmente algum Partido discorda, se nós lhe escrevermos com um ar sugestivo, por assim dizer – ele concluiu, com um sorriso, sentando-se de volta em seu lugar.
– Bom, então vamos escrever logo – eu pedi, me animando. – Sabe quanto tempo as cartas levam para chegar lá.
– Podemos mandar um telegrama – Astrakhanov acenou com a mão, para me tranquilizar. – De qualquer forma, não os encontraremos lá agora. Sua liderança, eu quero dizer. Estão a caminho do 7º Congresso da Internacional, então poderemos solicitar uma reunião e tratar disso pessoalmente.
– Mas o 7º Congresso não tinha sido adiado? – eu estranhei.
– Foi – Astrakhanov confirmou. – Mas eles partiram ainda em setembro, e não deu tempo de receberem a notícia. Devem estar a caminho.
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Dias Vermelhos
Historical FictionEm 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-se de uma crise econômica sem precedentes. Os ânimos estavam inflamados ao ponto da selvageria. Maria Clara logo escolheu seu lado...