Capítulo 72 - Ninguém passará

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— O sindicato decidiu nessa madrugada.

Quatro usou essa frase para conter o dilúvio de perguntas que despejamos sobre ele após o bombástico anúncio da greve. Ela respondia apenas uma dentre zilhares de indagações, mas já era um começo.

— Disseram que o Ministério do Trabalho está embaçando, e se a gente não fizer pressão, talvez nem saia aumento esse ano.

— Os preços ninguém esquece de aumentar, né — deixei escapar, lembrando-me indignada da minha última ida à quitanda.

— Pois é. E é naquele esquema, ainda: eles sobem agora, na expectativa do aumento de salário, e sobem de novo quando aumentar pra valer.

— É sempre assim — Astrakhanov concordou, voltando à mesa e tomando o último gole da sua caneca. — Se o trabalhador não vai à luta, mais cedo ou mais tarde acaba morrendo de fome. Certo, Camarada — ele acrescentou para Quarto, limpando a boca com as costas da mão. — Vou só pegar o paletó e já partimos.

Ele desapareceu na porta para dentro de casa, e eu convidei Quatro para entrar e tomar uma xícara de café enquanto aguardava. Pensando em liberar-me logo para confeccionar cartazes e prestar outros auxílios ao movimento paredista, comecei a limpar os destroços da refeição matinal. No meio da atividade, porém, uma preocupação me assaltou, e eu larguei os pires e talheres, saindo no encalço do meu falso marido.

Encontrei-o já voltando para a cozinha, e estendi os braços para detê-lo no meio do corredor.

— Escuta... Você vai para o piquete mesmo? E como vai justificar para a chefia? Você nem recebe pelas mesmas regras que os operários.

— Estava pensando nisso agora mesmo — ele disse, coçando o queixo escanhoado. — Se a gente tivesse certeza que essa greve vai emendar com o levante... mas ele só está previsto para daqui a dois meses... duvido que ela dure até lá.

— Exatamente. Se você entrar de cabeça na greve, capaz de te botarem na rua, e ficamos sem justificativa para morar aqui. Essa justificativa é único motivo de você trabalhar lá, para começo de conversa.

— Eu poderia... procurar um emprego na Central, se a Great Western me demitir...

— Duvido que contratem um dirigente que participou de greve — descartei. — A Western não te contratou por seu currículo invejável e habilidades notáveis com trens, né? Não sei se na Central também temos algum contato com influência o bastante.

Astrakhanov suspirou, pateando o chão um pouco.

— Mas que saco ter que ficar entre aqueles almofadinhas britânicos na hora da ação — ele se queixou. — Deviam ter me feito alemão e mandado para o setor de reparação dos trilhos ou coisa parecida.

Roí as unhas um momento, buscando uma solução.

— Faz o seguinte. Segure as pontas enquanto eu peço orientação do QG. De repente é mais interessante para a causa nesse momento que você trabalhe na penetração do movimento entre o operariado. Se for o caso, podem nos arranjar outra colocação.

— Certo.

— Aproveita e descobre entre os patrões o que pretendem fazer para enfrentar a greve.

— Você me pedindo para fazer jogo duplo? — ele riu, com um sorriso de canto. Avermelhei.

— Não tem nada de jogo duplo aí. Você estará trabalhando para o proletariado. Que é o seu dever em muitos níveis — sibilei friamente. Astrakhanov soltou um risinho irônico.

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