Capítulo 69 - A Noiva de Frankenstein

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Enquanto eu continha mal a ansiedade, Tonho desencavou uma folha de almaço dobrada três vezes e escrita apenas de um lado — o oposto àquele ao qual meu olhar tinha acesso. Ele me entregou o papel e, enquanto eu o desdobrava avidamente, minha atenção foi desviada por outro papelote que caiu do meio dele, e que reconheci de pronto, ainda no chão.

Tratava-se de um cartãozinho pardo bem simples, do formato de um cartão de visitas. Esse tamanho não era vão: tinha a finalidade de facilitar o repasse disfarçado do material. Disfarçado de quem?

Dos pais.

Eu já vira dezenas daqueles nos meus tempos de normalista. Eram vendidos em qualquer papelaria, banca de jornais ou agência dos correios, e minhas colegas ganhavam aos montes quando saíam para o footing, seus passeios de paquera. Por isso eu nem precisava olhara para saber que aquele continha apenas uma frase piegas e solene no meio (algo nas linhas de "Por ti minha alma sofre e seria feliz se Vossa Excelência aceitasse meus protestos de amor") e os códigos para responder "sim", "não" e "talvez".

— De onde saiu isso? — perguntei, enquanto Tonho, adiantando-se, catava o bilhete do chão e me restituía.

— Caiu da carteira do Seu Stuart quando ele parou pra comprar uma flor da florista que fica às vezes do lado do cinema.

— Ah!

— Não tem nada a escrito a mão, pelo menos que dê pra ler, mas decidi catar por via das dúvidas — ele explicou, ao me ver revirar o cartãozinho nas mãos com ar intrigado. — Acho que ele ia dar pra ela com a flor.

— E isso aqui também? — questionei, voltando a atenção para a folha de almaço, coberta por uma caligrafia redondinha e feminina em tinta azul.

— Não, nisso ele nunca pôs o olho — Tonho negou outra vez, transparecendo certo orgulho. — Meus homens roubaram bem debaixo do nariz da professora. Acho que é o rascunho da resposta dela.

— Muito bem, Tonho! Vocês estão de parabéns — exclamei, sem conseguir ler a carta, de tanto que minhas mãos tremiam.

— Acertei? Era isso que a senhora estava procurando?

— Tem grandes chances de ser, mas eu preciso olhar com mais atenção para ter certeza — voltando a mim, ergui os olhos e lancei um olhar preocupado para o fim da rua. — Não dá para fazer isso agora, ele já está vindo pra casa. Aliás, é melhor você ir embora — falei, antes de correr para a cozinha, fazendo um gesto para ele aguardar um instante, e voltar no outro pé com o pagamento combinado pela vigilância daquela semana.

— É pra já — concordou o garoto, conferindo a quantia. — Depois a senhora conta o que apurou? — pediu, já dando uns passos de costas no caminho de volta.

Hesitei.

— Bem, dependendo do que for, eu não vou poder — respondi. — Talvez o caso saia das minhas mãos, e não sei o que as autoridades superiores vão decidir...

— Ah... certo — a exclamação veio um pouco desapontada. — Vou indo, Dona Anita, que já estou vendo ele lá na esquina. Passar bem.

— Tchau.

Também recuei nos meus próprios passos e recebi Astrakhanov na cozinha, com a jovialidade de uma esposa de anúncio de jornal. Ajudei-o com o paletó e o chapéu, trouxe o jornal do dia, cantarolei enquanto preparava o jantar, provocando até uma pergunta sobre se algo especial tinha acontecido. Na impossibilidade de responder com a gargalhada maléfica que eu desejava, balbuciei qualquer coisa vaga enquanto continuava a temperar a salada. Por menos convincente que fosse a minha resposta, sua própria culpa no cartório impediu Astrakhanov de insistir no assunto — o jogo, aparentemente, tinha virado.

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