Capítulo 24 - O artista

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Eu nunca tinha sido uma entusiasta do verão – especialmente depois de viver no Rio de Janeiro – mas, após confirmarem minha ida a Leningrado, acompanhava com ansiedade o derretimento de cada floco de neve, revelando os últimos verdes recobertos, e o surgimento de cada flor, substituindo a lama que secava aos poucos.

As estações na União Soviética eram uma coisa muito diferente do que eu estava acostumava no Brasil. Elas eram mais radicais, por assim dizer. Além de serem em períodos contrários do ano, claro. Havia uma intensidade nas mudanças que não se repetia no meu país. As nossas palmeiras estavam verdes o ano inteiro, e o sabiá se esgoelava nelas ininterruptamente. As aves só viajariam para o sul no inverno se fossem estúpidas, porque no Sul estaria mais frio. Flores e frutos surgiam, mas as árvores sempre brilhavam em um verdor fresco que rescendia a uma esperança perene.

Isso não acontecia na União Soviética. Quando eu cheguei ao país, as folhas amarelavam, e foram depois avermelhando, como que numa linda simulação do ocaso de sua existência. Depois pereceram, abandonaram os galhos. Tudo se cobriu de branco. O inverno era lindo, também, mas era impossível não associar aquela beleza à morte. À palidez de um cadáver, talvez, se bem que um cadáver não é bonito.

E a primavera... a primavera era o renascer.

Clichê dizer isso? Talvez, para quem não viu ao vivo. Até nas pessoas era assim. Os russos sentiam com extrema intensidade a mudança das estações. Assim como todos se deslumbravam com a primeira neve, e depois se revestiam de certa melancolia, ao se prolongarem os dias sem sol, a chegada real da primavera trazia de volta sorrisos àqueles rostos habitualmente soturnos, melhorava as disposições, concedia favores que teriam sido negados uma semana antes, e preenchia até os carrancudos de bom humor.

Humor até demais, aliás.

– Quer dizer que você está indo para Leningrado – comentou Astrakhanov, com ar malicioso, entregando-me a propiska que continha o registro da minha saída de Moscou.

Eram seis e meia da manhã de primeiro de junho de 1934, os corredores da ELI se esvaziavam aos poucos, minha mala estava pronta ao meu lado, e não seria Astrakhanov dando uma de engraçadinho que estragaria o meu dia.

– Vou sim. Quer que eu dê algum recado para o Pavel? – respondi, guardando o documento no bolso. O sorriso do tenente se ampliou.

– Pergunte se era mesmo tuberculosa que a vizinha tinha, e diga-lhe que eu gosto do estilo de escrita – ele respondeu, cruzando os braços atrás das costas. – Não se esqueça de aprender pelo menos alguma coisa sobre construção, nem que seja os tipos de cimento. É preciso manter as aparências – concluiu, enquanto eu me afastava.

Eu virei o rosto e, por cima do ombro, mostrei a língua para Astrakhanov. Não há dia melhor que o primeiro das férias para ser infantil com seu professor. O tenente apenas soltou uma gargalhada e fechou a porta.

Juntei-me aos colegas que iriam para Leningrado – uns pouco rapazes; parece que mulheres não era muito amigas dessa área mesmo, ou tinham se deixado dissuadir pelos respetivos proforgs – e partimos para a estação.

A viagem levou aproximadamente dez horas. Já tinha escurecido quando chegamos na segunda capital, toda cortada por seus rios que me traziam boas, embora breves, lembranças.

Eu e os colegas nos dirigimos diretamente à delegacia central, para registrar nossa entrada na cidade. Por sorte, um deles já tinha estado em Leningrado mais de uma vez antes, e tinha boa noção de localização. Confesso que eu não havia pensado em como chegaria à delegacia, antes de fixá-la como meu ponto de encontro com Pavel na última carta que eu lhe enviara.

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