Capítulo 23 - Sessão Plenária

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Passei semanas de mal com os rapazes. Foi bom, porque nesse período me aproximei mais de Ludmila e de Tatiana. Cheguei no meu quarto bufando de raiva, e lutando para conter algumas lágrimas que teimavam em acorrer agora que eu havia saído do combate, e Ludmila, contra seu costume, perguntou o que tinha acontecido. E eu, contrariando meu costume, contei. A chinesa, do seu canto, disse que tinha passado por situação semelhante. "Nós precisamos de soldados nas fileiras da Revolução, não de uma cozinheira", alguns haviam protestado com veemência na reunião em que o Partido chinês decidira enviá-la. Ludmila, por sua vez, já tivera que repelir investidas do compatriota na viagem de vinda para a ELI. "Você é uma mulher de mente livre, vamos, o que custa? Não estou te pedindo para casar comigo nem nada, amanhã esquecemos tudo".

É, repulsivo.

Conversamos até tarde. Aparentemente, reconhecer que enfrentamos os mesmos problemas que alguém gera um vínculo mais forte do que a nacionalidade.

No dia seguinte ao meu rompante, Astrakhanov veio me procurar, apoiado na sua muleta, quando voltei do refeitório.

– O que houve com você ontem, Shedritcheva? Por que saiu correndo que nem louca? Até esqueceu a carta do seu amigo.

De fato, a irritação varrera até mesmo Pavel da minha cabeça. Recebi o envelope de Astrakhanov com gratidão.

– Nada... Li uma coisa que me incomodou. Já passou.

Astrakhanov lançou-me um olhar de compreensão.

– Olhe, você não ligue para a Bruntieva, já disse isso. Para os padrões dela, "Tem salvação" é um elogio, acredite. Mas se quer saber, é bem feito, para você aprender a não mexer onde não é chamada.

Certamente ele havia recolhido os papéis que eu tinha deixado cair, e concluíra – errado – a razão do meu incômodo. Não vi motivo para corrigi-lo, porém. Não queria remexer naquela história de novo.

– Tem razão – respondi, simplesmente, e logo desviei o assunto. – Acha que algum dia vai voltar a nos dar aulas de tiro? Ou se vão arranjar um substituto...

– Voltarei a dar as aulas. Acho que até o fim da semana já vou poder estar caminhando sem isso – ele retrucou, levantando a muleta. – Logo mais retomaremos os treinamentos, assim que eu arranjar um escudo, e um binóculo, para fiscalizar o Suarez de longe – brincou, num resmungo. Eu ri. Ele pareceu satisfeito. – Enfim, vou descansar para curar mais rápido. Boa noite.

Respondi, e já fui abrindo a carta de Pavel, antes mesmo de entrar no meu quarto. Afinal, eu já estava com um dia de atraso na correspondência, talvez até dois.

Como de costume a epístola me trouxe um respiro de leveza à rotina. Ele contava sobre as aventuras de sua irmãzinha Dúnia, que depois que aprendera a andar, costumava ser encontrada nos lugares mais improváveis do edifício. Vizinhos vinham entregá-la de vez em quando, deixando Anna Anatolievna de cabelos arrepiados ao contar onde "a pequena espiã" tinha se enfiado dessa vez. No final da carta, porém, havia uma pergunta que dissipou toda a atmosfera infantil, e me encheu, simultaneamente, de felicidade e tristeza.

"Quando será que vamos nos ver novamente?

Saudades,

Pavel."

Suspirei, me atirando na cama e jogando a carta de lado. Eu não fazia a mínima ideia. Havia quase seis meses que não nos víamos, e as cartas, que a princípio amenizavam a saudade, agora tinham o efeito reverso, e a acentuavam.

Mas eu estava presa a Moscou e a um currículo escolar que não dava folga, o que podia fazer? Ele, por outro lado, tinha seu trabalho, sua família, e pouco dinheiro para desperdiçar em passagens. De qualquer forma, se eu sugerisse para ele vir, será que viria? Talvez fosse isso que ele queria dizer com aquela frase, que estava esperando um convite. Mas e se essa fosse uma leitura errada? E se ele se fechasse e me colocasse no meu devido lugar, com um gentil "Tenho mais o que fazer da vida, Maria"?

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