Capítulo 13 - A canção da cripta

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Na distribuição das tarefas e funções, já que todos deviam ter um papel ativo no cotidiano da escola, eu tinha sido nomeada para o Comitê de Celebrações como representante do Setor L – o hispanofalante – o que facilitou minha autorização para saída no dia livre, sob o argumento de que eu precisava conhecer de antemão o local do desfile.

Não sei por que motivo bizarro eles pensaram que eu era adequada para a tarefa; talvez não quisessem me confiar um encargo mais sério, ou simplesmente não tivessem onde me encaixar, ou talvez fosse a reputação de povo festeiro, atrelada à minha nacionalidade. Mesmo com a distância entre Brasil e União Soviética, o tal personagem "Ostap Bender" que o Camarada Ióssif de Leningrado vivia mencionando já tinha espalhado essa nossa fama por lá.

Por mais que eu estivesse louca para ler os livros que continham esse célebre personagem, literatura ficcional, para mim, era algo vedado no momento. Simplesmente não sobrava tempo e olhos. Já estava arrependida do meu desvio para ler Bulgakov, porque mais cargas de teoria não paravam de chegar, e alguns dos livros eram difíceis até para mim, que tinha certo nível de educação formal, quanto mais para meus colegas, que, em sua maioria, haviam largado a escola cedo para trabalhar, e alguns só tinham aprendido a ler quando se juntaram ao Partido. Frequentemente precisávamos marcar consultas, individuais ou coletivas, para que algum professor nos explicasse melhor esse ou aquele livro ou corrente ideológica.

Quando o assunto era militar e não requeria conhecimentos muito específicos, com frequência consultávamos Astrakhanov, pela praticidade de tê-lo disponível no fim do corredor. Ele, por sua vez, aproveitava essas ocasiões para tratar conosco as questões administrativas, em vez de ficar nos procurando pela escola. Não demorou a chegar minha vez de ser retida, após uma aula sobre os problemas enfrentados pelo Exército Vermelho durante a Guerra Civil e como foram resolvidos.

– Camarada Shedritcheva, aguarde um instante, preciso falar com você – anunciou o Tenente Astrakhanov, quando eu ia saindo da sala, na rabeira dos demais. Deixei-me ficar, então, imaginando o que eu podia ter feito de errado dessa vez. Já havia levado uma advertência por atraso, em um dia em que o "só mais cinco minutinhos" acabou fugindo do meu controle.

– Pois não, tenente? – eu apressei, depois de aguardar alguns instantes, enquanto ele meticulosamente apagava o quadro negro e organizava os papéis em sua mesa. Astrakhanov fez um aceno para que eu fechasse a porta, o que atendi logo.

– Conversei com os superiores sobre a possibilidade de se corresponder com um cidadão soviético – ele disse, e eu não consegui disfarçar o pulo das minhas sobrancelhas. Já tinha até esquecido dessa pretensão, com as esperanças esmagadas pelo modo brusco com que fora encerrada nossa última conversa sobre o assunto. – Eles consideraram não haver problema, desde que, naturalmente, todas as vedações de termos e assuntos sejam obedecidas, para preservação do sigilo. Os destinatários possíveis não se restringem à lista, mas você terá que me fornecer os dados do cidadão previamente, para uma pequena pesquisa de antecedentes. Somente após essa pesquisa será aprovado, ou não, o pedido de correspondência.

– Ah, será aprovado, com certeza, ele é uma pessoa super simples – eu disse, sem conseguir conter minha animação. – É filiado ao Komsomol e tudo, certamente não representa nenhum risco político. Solinin, Pavel Ivanovitch. É construtor e estuda engenharia de produção no Instituto B..., em Leningrado. O endereço completo eu não sei de cor, teria que consultar o papel que ele me deu – despejei, velozmente, com medo de que Astrakhanov mudasse de ideia. Ele pôs as mãos na frente do corpo, como para conter meu fluxo de palavras.

– Você me fornece os dados direitinho mais tarde, quando retornarmos para o alojamento – tranquilizou.

– Quando sai o próximo correio? – perguntei, ansiosa. – Será que vai sobrar vaga no desta semana?

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