Capítulo 22 - Favorecimento

339 80 466
                                    

– Eu só queria que ele soubesse que foi sem querer – lamentou-se Jaime, pela quinquagésima vez nas últimas duas semanas.

– Ele sabe, Suarez – eu consolei, mecanicamente.

– Até por que – a voz áspera de Silo complementou – você precisaria ser habilidoso e sortudo para fazer aquilo de propósito. E visivelmente você não é.

Jaime fechou a cara, e José Maria riu do comentário, enquanto mergulhava um pedaço de pão na sopa. Ludmila baixou a xícara de chá.

– Se quer saber, acho que ele deve estar até gostando de um tempinho livre da gente – ela falou, secando a boca com um guardanapo.

Jaime pareceu ter finalmente se convencido. Por agora. A ladainha seria repetida pelo menos mais uma vez antes de irmos dormir. Como agora era a penitência da hora do jantar, não era difícil prever sua próxima frase:

– Se eu pudesse pelo menos fazer alguma coisa para ajudar... mas ele não quer me ver nem pintado de ouro!

– Posso entender as razões dele – rosnou Ramón, lançando um olhar de esguelha a Jaime, apesar de, a essa altura, já estar sem a tipoia havia um bom tempo.

O momento que sucedeu o acidente na aula foi bastante confuso. Eu não reajo tão bem a sangue – devia ter pensado nisso antes de pensar em virar revolucionária profissional? Provavelmente – e então me voluntariei para ir correndo atrás do motorista do furgão que nos trouxera. Era um homem grandalhão e bem tranquilo. Ele e José Maria deram conta de transportar Astrakhanov, enquanto Silo, Suarez e um dos chineses amparava Ramón. Os dois foram colocados deitados no chão do veículo, e o restante de nós se acomodou em volta.

O tenente deu a chave do barracão ao outro chinês e mandou que guardasse as armas ("Com cuidado, por favor!"), missão em que ele foi auxiliado pelo italiano e pelo búlgaro. Quando eles voltaram, retornamos ao colégio numa pressa sensata, isto é, numa velocidade rápida, mas não a ponto de provocar outro acidente. Por mais que ainda estivesse pálido e que seu rosto demonstrasse dor ocasionalmente, Astrakhanov não parecia incomodado de ter todas as atenções das três garotas da turma em si.

Quando chegamos à enfermaria, o susto diminuiu um pouco. O ferimento de Ramón era bem superficial, e colocaram seu braço numa tipoia por precaução. "Um rapagão forte desse", disse a senhora enfermeira, "vai cicatrizar num instante. Você vai até ficar mais resistente depois, vai ver só. Levar um sustinho de vez em quando faz bem para o coração".

Com Astrakhanov já foi um pouco mais complicado. O tiro fora praticamente à queima-roupa, e a bala ficou alojada, mas felizmente não atingiu alguma parte crítica que pudesse roubar-lhe o movimento da perna. Recomendaram-lhe repouso por algumas semanas, todavia, e ele se afastou das aulas, passando quase o tempo todo em seu quarto.

Jaime estava olhando para mim, e eu sabia o que ele queria.

– Sim, eu levo. Mas você carrega até o prédio.

Esperei meu colega ir buscar um pote de sopa, e partimos todos juntos para o prédio-alojamento. A noite estava estrelada e até se ouviam grilos, cantando os rumores da primavera. O chão ainda estava recoberto pela lama dos derretimentos, e o vento ainda soprava gelado, por isso Jaime escondeu o prato debaixo da aba do sobretudo, entregando-me a marmita somente quando já estávamos no nosso corredor.

– Eu não quero ser expulso, Clarinha – ele falou, queixoso. – Interceda por mim, vai.

Já tínhamos tido essa conversa antes, mas ele pegaria os resultados da sua autocrítica no dia seguinte, então era natural que estivesse especialmente nervoso naquela noite.

Dias VermelhosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora