Eu tinha vindo para Leningrado antes do combinado. Chegara na noite anterior, mas não dissera nada a Pavel, seguindo direto para o hotel.
Esperaria até a hora certa para encontrá-lo. Adiantamentos não eram necessários.
Uma surpresa bastava.
O sol invernal já se filtrava pelas cortinas, junto com suas promessas não cumpridas de aquecer. A temperatura dentro de mim era semelhante à que espantava as pessoas lá fora, e eu me sentia oca como uma estepe. Toda a disciplina bolchevique por mim aprendida se concentrava, no momento, em evitar pensamentos.
Quaisquer pensamentos.
Um barulho na maçaneta chamou minha atenção. A porta foi aberta com certa atrapalhação, e alguém entrou tropicando, indo cair de cara na cama. Permaneceu ali na mesma posição, praguejando, enquanto eu afastava os cobertores e ia fechar a porta.
Aproximei-me de Astrakhanov, e virei-o com um empurrão. Ele bateu o braço na parede, mas não me importei, continuei a encará-lo, severa. Tinha aparecido calado na estação no dia anterior, não falara comigo durante a viagem inteira – mesmo estando transparente que eu precisava de encorajamento – e sumira no mundo tão logo botamos os pés no hotel, sem dar satisfações. Como poderia dar certo uma parceria que começava assim?
– Onde você se meteu? – cobrei, embora não fosse necessário perguntar: o cheiro de vodca exalava de todos os poros.
Em mais de um ano conhecendo Astrakhanov, sabia que era viciado no não alcoólico kvas, mas vodca eu nunca o tinha visto beber. E justo agora resolvia começar.
– Dar uma volta – ele engrolou, gesticulando. – Conhecer... Petrogrado. Não, São Petersburgo. Não, Leningrado. Céus, parem de mudar o nome dessa cidade! – grunhiu, apertando os olhos e depois puxando os cabelos com as palmas das mãos. – Quer saber? Não é da sua conta – ele se voltou contra mim, fazendo uma carranca.
– É, sim, da minha conta, infelizmente, é muito da minha conta – eu respondi, pegando meu travesseiro e jogando na cara dele, com raiva. – Vá tomar um banho e depois passe o resto da tarde dormindo. De noite eu não quero ver nem sombra desse porre – gritei, batendo o pé e apontando para o banheiro.
Astrakhanov ficou olhando para mim e piscando. Em seguida se levantou, arrastou os pés até o banheiro, tropeçou na maçaneta novamente. Eu só observava, de braços cruzados. Ele apalpou a parede às cegas e encontrou o interruptor. Tirou o sobretudo, a jaqueta, a camisa, ficando só com a regata, tudo isso de porta aberta. Alçou à mão em direção à torneira da ducha, mas se desequilibrou, caindo debruçado sobre a lateral da banheira. Ele ficou ali e eu não tive nenhuma disposição para ir socorrer.
Quando comecei a cogitar se ele não tinha adormecido, seus ombros se sacudiram, e ele começou a soluçar. A dor era tão visível que até me fez esquecer por um momento a raiva e o mau-humor. Aproximei-me e pousei a mão em seu ombro.
– Astrakhanov, está tudo bem? – perguntei, grave. Ele continuou chorando. – O que aconteceu? – murmurei, suavizando o tom de voz e me agachando ao lado dele.
– Ela me deixou – ele uivou.
Demorei um instante para entender o que ele queria dizer. Ah, Elvira. Eu tinha esquecido completamente da sua existência.
– E por quê? – eu perguntei. Quem sabe, se pudesse desabafar, ele superava a crise mais rápido. Astrakhanov ergueu a cabeça, suspirando longamente.
– Porque eu contei tudo a ela. Sobre a missão. Sobre o nosso disfarce – confessou.
Minha indignação voltou toda de uma vez. Saltei de pé.
ESTÁ A LER
Dias Vermelhos
Historical FictionEm 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-se de uma crise econômica sem precedentes. Os ânimos estavam inflamados ao ponto da selvageria. Maria Clara logo escolheu seu lado...