Capítulo 71 - Entre beijos e tapas

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"...Espero que não me julgue indecorosa por tomar a liberdade de escrever-lhe. Deus sabe que este não é o padrão de meu proceder. Tanto assim que mal sei como verter em palavras o que desejaria aqui expressar".

Meus olhos percorriam aquelas linhas pela quinquagésima vez. Na sala, a voz do locutor ronronava os erres, sem conseguir ocultar o sotaque nordestino.

Todas as cartas de amor são ridículas.

Eu não sabia por que a guardava, na verdade. Devia tê-la destruído, após constatar que minhas suspeitas eram infundadas. Mas havia algo de extremamente desconfiado na minha personalidade, que sempre me fazia conservar as coisas "para uma eventualidade".

Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas.

Além do mais, em meio àquela solenidade risível e digna de pena, havia algo de cândido, de tocante, que provavelmente era o que me impelia a relê-las.

Havia um quê de identificação.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor, como as outras, ridículas. As cartas de amor, se há amor, têm de ser ridículas.

Fazia dois anos agora das minhas primeiras cartas, as contidas. E um ano inteiro das outras, tão poucas, com poemas bem mais melosos que o do rádio. "Ridículas", de fato, mas não me traziam vergonha. Só nuances de ternura e dor.

Mas, afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas.

Lembrei também da última, a tentativa desesperada de reacender tempos idos. Impulsionada pelo tédio de uma missão que se arrastava, que se provara muito menos romântica e aventurosa do que parecera ao princípio, e pela falta de perspectivas concretas sobre o futuro.

Futuro incerto sempre evoca nostalgia.

Quem me dera no tempo em que escrevia sem dar por isso cartas de amor ridículas.

E como eu poderia julgar Astrakhanov, com um teto de vidro do tamanho do meu? Eu mesma experimentara aqueles sentimentos. Aliás, a se acreditar nos boatos que vinham da capital, não fôramos os únicos empurrados a atitudes insensatas pela marcha aflitivamente lenta da máquina revolucionária. A se acreditar nos boatos vindos do Quartel General, a própria esposa de mentirinha de Prestes andara pedindo autorização à Maison para deixar o posto e voltar para casa, e, no final de agosto, o Camarada Altobelli surtara por completo.

Pressionado pela situação indefinida, morrendo de saudades da Pátria, o homem simplesmente foi ao aeroporto do Rio e tentou comprar uma passagem para a Argentina – usando seu passaporte verdadeiro, em nome de Rodolfo Ghioldi. O funcionário da companhia, como era de se esperar, reconheceu o nome do comunista procurado. Ghioldi então entrou em pânico e saiu correndo para não ser preso no ato, deixando o documento nas mãos do inimigo e com isso denunciando sua presença no país.

Quase foi linchado por Gruber e os outros, como era de se esperar.

Mas tudo indicava que esses descontroles não aconteceriam de novo, pelo menos conosco, ali em Natal. Falava-se em greves, transferências e destituições, a cidade estava tensa por causa do resultado das eleições estaduais, e as encrencas com os Galinhas Verdes só tinham se acirrado depois do nosso pequeno vandalismo. Conflitos se sucederam, inclusive em outras partes do estado. No último enfrentamento, no aniversário da Ação Integralista — a "Noite dos Tambores Silenciosos" — tinham sido presos alguns dos nossos. O excesso de ocupações e preocupações nos salvava de emprestar a mente para o diabo instalar sua oficina. As medidas de segurança foram redobradas, e incluíam destruir material comprometedor.

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