Capítulo 63 - Tudo que é sólido desmancha no ar

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– Pede para sair.

O barulho alto e ritmado das rodas dos trens sobre os trilhos abafava nossa conversa cochichada. Não que fosse necessário. Dia de semana, no meio da tarde, o trem entre Natal e Recife estava quase vazio. Não fora fácil arranjar uma desculpa para Astrakhanov se ausentar da Great Western em horário de trabalho, mas não se pode ignorar uma convocação do Estado-Maior. Nos assentáramos nas poltronas centrais, para evitar gente escondida nas ligações com os outros vagões. Também havia assentos vagos entre nós e os passageiros mais próximos. Mesmo assim, o sussurro de Astrakhanov em resposta veio ainda mais baixo que o meu.

– Você acha? Não vão desconfiar?

– Não, é a oportunidade perfeita. O fechamento da ANL foi um grande golpe na moral dos trabalhadores, você pode dizer. Eles não tentarão nada tão cedo, então não há necessidade de vigiá-los. Diga que eles te entediam.

– Não acreditarão fácil assim.

– Bem, então diga que os trabalhadores é que desconfiam de você, que passaram a hostilizá-lo e já não falam mais nada na sua frente. Não sei, John, invente qualquer coisa. O que você não pode é permanecer nessa saia justa.

Um grunhido e ele esfregou o rosto com a mão esquerda.

– Eu sei – murmurou, terminando a palavra num suspiro.

Guardamos silêncio, ambos olhando o sol declinar pela janela. A viagem devia estar no fim. De caminhão, o transporte entre as duas cidades levava por volta de cinco horas, dependendo da condição do trânsito, do veículo, ou da estrada. O trem, por ter caminho exclusivo, faria o percurso em um pouco menos, se houvesse linha direta entre as duas capitais. Devido à necessidade de fazer uma intersecção na cidade de Nova Cruz, e levando em conta as paradas, o processo nos tomara quase a tarde inteira.

– E os trabalhadores? – ele ponderou, após um momento. – Não suspeitarão de verdade se eu resolver me desassociar agora?

Dei de ombros, ainda com os olhos no céu azul-alaranjado.

– Para eles você conta a verdade. Não toda – acrescentei, ao receber dele um olhar alarmado. – Diga que estão te pressionando para atraiçoá-los e, por não querer fazer isso, nem perder o emprego, vai sair do sindicato.

– Honestamente, eu preferia sair era desse maldito emprego.

– Podemos conversar sobre essa possibilidade com Berger. À luz dos últimos acontecimentos, quem sabe ele concorde que é o melhor caminho.

Na noite após o fechamento da ANL, tivéramos uma reunião de emergência do Partido para discutir a questão, e Santa trouxera periódicos do fim de junho e da primeira semana de julho, que só então recebera, graças a mudanças no itinerário do navio do camarada que os transportava. Ao analisarmos os exemplares, uma teia de acontecimentos se costurou diante dos nossos olhos e permitiu que formássemos o quadro que culminara no deletério decreto.

O jornal carioca O Globo vinha promovendo, fazia algum tempo, uma acintosa campanha contra a Aliança Nacional Libertadora, encabeçada pelo filho de seu fundador, o jornalista Roberto Marinho. Ele escrevera dezenas de artigos contra a associação, em essência acusando-a de comunista. Quem dera: se fosse assim, não teríamos o futuro trabalho de converter sua moderada ambição anti-imperialista em uma Revolução Proletária de verdade.

No final de junho, porém, as especulações do Senhor Marinho ganharam um importante fermento. A polícia de Pernambuco – a pior da região, segundo Praxedes – invadira a casa de um aliado nosso e apreendera alguns documentos, dentre eles duas cartas do nosso Estado Maior, que foram publicadas ipsis litteris pelo Correio da Manhã, outro jornal carioca. Lembrei-me da invasão do meu apartamento no Rio e percebi como fôramos sortudos por não haver nada comprometedor em nossa posse na ocasião. O colega não tivera a mesma sorte.

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