Capítulo 21 - Dedo no gatilho

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A determinação do governo soviético sobre não comemorar o Ano Novo começou a fazer sentido para mim quando percebi que, com a chegada de 1934, nada mudara realmente, a não ser o número no calendário.

A mesma grossa camada de neve cobria as ruas de Moscou, tornando inviável qualquer atividade externa, e nos fazendo dedicar ainda mais tempo para as leituras, no interior aquecido dos prédios escolares. O que era muito providencial, diga-se de passagem, pois o ritmo intenso e o nível de exigência dos estudos continuava alto.

Para não dizer que nada quebrou a rotina dos primeiros meses do ano, eu fui mesmo até à Igreja de São Basílio visitar o seminarista Kiril, no Natal. Comentei com as meninas, e Sveta quis ir comigo, levando um doce para o sacristão. Estranhei; nem sabia que ela era religiosa. Fiquei imaginando se não seria um plano de Ivan para me sondar – eu estava ficando paranoica! –, mas no fim das contas deu tudo certo. Ela não me perguntou nada inconveniente, e foi até bom ter companhia.

Também em janeiro chegaram colegas novos para o Setor Latinoamericano, em que eu estava me integrando melhor, desde a recomendação de Tabanov.

Ali pela metade de fevereiro veio o primeiro rompimento significativo na rotina: introduziram educação física no nosso currículo.

"Isso é muito bom", foi o comentário de Pavel, em resposta a uma carta em que eu tinha anunciado vagamente que começaria a praticar atividades físicas. "Eu também entrei num programa de esportes por aqui. Retomando minhas atividades da infância. Estou até pensando em competir no verão. Revezamento e lançamento de martelo. Esportes fazem a gente se sentir renovado. "

Eh, não, eu não concordava. Não me sentia nem um pouco renovada, ao contrário, parecia que um tanque tinha passado por cima de mim ao final de cada aula com a Bruntieva nos ginásios com calefação. E essa sensação não era exclusividade minha.

– Eu não pago... mensalidade... pra isso... – ofegou Jaime, se debruçando sobre os próprios joelhos ao parar ao meu lado.

– Você não paga mensalidade – eu pontuei, rindo.

Ele apontou um dedo em minha direção.

– Excelente ponto – e o rapaz se endireitou, arqueando e estralando as costas. – Céus, ela está me matando!

– Pense pelo lado bom – eu disse – pelo menos já seremos especialistas quando precisarmos correr da polícia lá no Brasil.

Jaime abriu a boca para responder, mas Bruntieva, que estivera vigiando a dupla dele, o localizou.

– Suarez! O que está fazendo aí parado? – gritou, abalando o teto do ginásio. – Marchando! Raz, dva, raz, dva...

Era março, e a neve começava a derreter, quando descobrimos que a educação física era essencialmente uma preparação para outra parte do treinamento, que até o momento ficara negligenciada: a paramilitar.

Eu ia aprender a atirar.

Quando assimilei essa informação, passei dias arrepiada, fantasiando as aulas, e a futura aplicação do conteúdo aprendido. Finalmente eu sentiria que estava me preparando para a Revolução, porque até então... conhecer um monte de teoria era bom, claro, mas não dava para expulsar a burguesia só jogando livros em cima deles. Por mais que alguns fossem bem pesados.

Agora era a hora do "vamos ver", como dizem. Era nessa matéria que eu descobriria se, no fim das contas, não fora talhada para o movimento revolucionário, para a luta armada. A pressão que esse pensamento exerceu sobre mim foi inimaginável. Cheguei a sonhar algumas vezes que fazia tudo errado, não conseguia recarregar a arma, ou estava limpando um fuzil e ele explodia na minha mão.

Dias VermelhosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora