Capítulo 74 - O poder da caneta

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Minha primeira atitude foi desarmar o desequilibrado. Literalmente desequilibrado: as mãos de Paiva tremiam num misto de embriaguez e raiva, e eu não me espantaria se um dedo esbarrasse no gatilho sem querer.

Com a paciência que outrora usava com as crianças especialmente as ranhetas, convenci-o a me entregar o objeto e a baixar a voz. Depois, ajudei-o a levantar, apoiando-o nos meus ombros. Enquanto o conduzia aos tropeços para a padaria Palmeiras, que era o ponto amigo mais próximo, ouvia seus murmúrios continuados de "Morra Rafael Fernandes" e "Viva a Revolução!"

Só eu ouvia, por sorte.

— Meu Deus, o que aconteceu, mulher?! — espantou-se a Dona Rita, vendo-me adentrar seu estabelecimento de volta, com os retalhos do que um dia fora um respeitável, embora debochado guarda civil.

— A senhora não teria um copo d'água para ele? — tornei, sem querer entrar em detalhes sobre o estado de Paiva na frente dos clientes da padaria.

A padeira pegou o outro braço do bêbado e nos conduziu ao depósito no andar superior onde costumávamos fazer as reuniões. Lá, nós o depositamos sobre um saco de farinha, e Dona Rita desceu por um momento, voltando com a água e um pedaço de rapadura.

— Mas o que foi que houve com esse rapaz? — cochichou-me Rita, enquanto Mário tentava interromper o curso natural da ressaca com os mimos.

— Foi demitido. De uma maneira meio inesperada, pelo que eu entendi.

— Nós temos que fazer a revolução hoje — foram as primeiras palavras dele, quando falou novamente, a voz já um pouco menos pastosa.

— Dona Rita, traz mais rapadura.

— Não, eu estou falando sério — Paiva protestou, abrindo os olhos. — Está todo mundo transtornado e revoltado. Alguns que sabem que eu sou comunista me abordaram para perguntar o que fazer, pediram pra tomar uma atitude. Se o levante... for hoje... Preciso falar com o Praxedes.

E ele tentou se levantar, mas trançou as pernas no primeiro passo. Eu e a padeira trocamos um olhar.

— Não, senhor. Você fica aqui, mocinho — ela estabeleceu, pondo as mãos nos ombros dele e empurrando-o de volta para o saco de farinha. — Dona Anita vai buscar o Mamede, enquanto você recobra o juízo.

Anuindo, desci as escadas correndo e passei como um avião pelos clientes na fila do caixa, que só aumentava ante a ausência da cobradora. Sabia que, àquela hora, Praxedes ainda devia estar trabalhando na sapataria, mas até eu chegar lá, o expediente já teria encerrado. Tive um pouquinho de trabalho para arranjar uma desculpa decente para abordá-lo, mas não demorou muito e nós dois corríamos de volta para a Palmeiras.

— Cadê o homem? — Praxedes perguntou a Dona Rita, que fazia contas num bloquinho, e nem levantou os olhos à nossa entrada, limitando-se a apontar com o polegar por sobre o ombro.

Encontramos Paiva no mesmo lugar e quase na mesma pose em que eu o tinha deixado, estirado sobre um saco de farinha. Parecia estar dormindo, mas Praxedes não teve escrúpulos em se aproximar dele e sacudi-lo mais uma vez pelo ombro.

— Paiva, me explica essa história direito, cabra — Praxedes instou, após um breve cumprimento. — Como assim demitiram todo mundo? E que é que o Fernandes vai fazer, contratar um efetivo novo? Onde que ele vai arranjar jagunço o bastante?

Paiva sacudiu a cabeça.

— Sei lá — ele contou. — Ele dissolveu a Guarda no estilo dos coronéis que ele representa: "eu quero, eu posso, eu vou", e sai fazendo, sem olhar consequência. Assinou um decreto e pronto.

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