Capítulo 51 - Provisório Permanente

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Astrakhanov não questionou o que me fizera mudar de parecer quanto à invasão de nosso apartamento. Por sorte. Também não titubeou um momento sobre o procedimento a seguir. Correu para o quarto dele, e eu fui atrás. Encontrei-o remexendo nas gavetas, certamente para verificar se alguma coisa havia sumido.

Peguei o exemplo, tempestuei para o meu quarto, e passei a revirar as gavetas e todos os cantinhos, meio desordenadamente, tentando me lembrar onde guardara o que era relevante. Os documentos eu sempre carregava na bolsa. Astrakhanov já queimava as comunicações tão logo se tornassem inúteis ou suas informações fossem absorvidas. Só sobrava, então, os jornais.

Os jornais!

Girei pelo quarto inteiro atrás deles. Não, não estavam ali. Uma pilha de periódicos de esquerda, tinha até o Classe Operária... Como eu pudera ser tão descuidada? Ainda mais agora, com aquela lei...

Pressionei a testa e me apoiei na parede com a outra mão, sentindo uma leve vertigem. Astrakhanov irrompeu no quarto, com o paletó torto e os cabelos revirados e empoeirados. Devia ter se enfiado debaixo da cama, na sua busca por alterações causadas pelo invasor.

– Deu pela falta de alguma coisa? – ele perguntou.

– Os jornais – eu falei, fechando os olhos para não ver a carranca que certamente acompanharia a bronca dele.

– Ah, isso. Não tinha nenhum, eu jogo todos fora assim que você termina de ler – anunciou o tenente, tranquilamente, e eu arregalei os olhos.

– Mas aquela pilha que ficava aqui... – eu balbuciei, apontando para o cimo da cômoda.

– Só os "normais", nada comprometedor. Você nunca os relê, mesmo – ele deu de ombros. – Vai ver é por isso que não percebeu.

Eu – que já estava imaginando nossos pseudônimos sendo datilografados na capa de um processo criminal novinho – respirei aliviada, com a mão no peito, contendo mal os ímpetos de abraçar o tenente em agradecimento. A paranoia dele acabava de nos salvar. Nunca mais eu o criticaria por causa dela.

– E aquela foto? – ele perguntou, de repente, sobressaltando-se.

Levei um instante para entender a que ele se referia, e introduzir a mão na gola do vestido, puxando meu retrato com Pavel da sua morada regular e mostrando-o ao tenente.

– Você nunca se separa disso? – Astrakhanov comentou-constatou, pasmo, afastando a necessidade de resposta com um aceno da mão. – Certo, eu vou sondar o porteiro, enquanto você arruma nossas coisas, tudo bem? – perguntou.

Eu acenei que sim com a cabeça.

– Para onde iremos? – perguntei, num sussurro assustado.

Astrakhanov, que já estava saindo, voltou-se para mim.

– Ainda não sei. Só não podemos ficar aqui. Até onde temos conhecimento, nada de comprometedor foi encontrado, mas... E se amanhã aparecerem com uma ordem judicial?

Fiz sinal de que entendia, e ele partiu. Arrumei minha mala, perscrutei meu quarto e os cômodos de uso comum, em busca de itens pessoais nossos espalhados pela casa, e já estava dobrando as camisas de Astrakhanov quando ele voltou. Em vez de me dizer o que descobrira com o porteiro, falou que assumiria sua própria arrumação, e eu fui para a cozinha, para colocar em nossa sacola de compras os alimentos que ainda estavam aproveitáveis – afinal, Berger nos instruíra a evitar desperdício.

Logo o tenente me encontrou ali, com uma mala em cada mão.

– Vamos?

O mais silenciosamente que conseguimos, nós abandonamos o apartamento, levando a chave para devolver ao proprietário.

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