Capítulo 79 - Fartura e fortuna

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Paralela à ferrovia que ligava Natal e Nova Cruz corria uma estrada crestada. O sol, que já resplandecia cedo com radiosa intensidade, ressecava ainda mais a rodovia, ocultando em uma nuvem de poeira o caminhão que me transportava de volta para a capital potiguar.

Não, não houvera ordem para recuar. Pelo contrário. Com mais um punhado de camaradas armados e cansados na carroceria, eu ia me reportar à Junta Governativa na qualidade de portadora de boas notícias — e algo mais.

— Ei! — chamei um indivíduo que perambulava na entrada da cidade com um fuzil, perguntando-lhe o paradeiro da Junta.

— Até onde eu sei, estão tudo lá na Vila descascando uns abacaxis — ele informou, e gritei para o motorista tocar direto para a Vila Cincinato.

Pelo caminho, fui matutando em que abacaxis os camaradas poderiam já ter para descascar. As ruas pareciam calmas, nossas tropas ainda perambulavam por ali, porém em postura relaxada. O bonde voltara a funcionar e até havia mais civis nas ruas. Verdade que vi filas na frente de alguns estabelecimentos e, nessas concentrações, reinava certa agitação. Mas tudo se ajeitaria logo, se o barco da Revolução continuasse a ser soprado pelos bons ventos que vinham nos carregando até o momento.

— ...é diferente, porque são os nossos que operam. Pequeno-burguês é... Camarada Anita, já? — Praxedes demonstrou seu espanto, virando-se ao ouvir os tacões de nossas botas reboando no mármore. João Galvão, seu interlocutor, também voltou a atenção para o recém-chegado destacamento.

— Pois é. O Camarada Quintino está por aqui? — perguntei, olhando brevemente em volta no saguão da sede do governo.

— Saiu faz uma meia hora, foi fazer um inventário do que tem no quartel. O que foi, deu ruim, encontraram resistência? Precisam de reforços, já?

— Pelo contrário, camarada — anunciei, orgulhosa. — Viemos trazendo as contribuições do interior para o esforço revolucionário.

E, sem esperar convite, narrei-lhes as aventuras da madrugada.

Mal o astro noturno pendera um pouco para o oeste, e a Coluna Sul, de cujo comando eu participava, partia semiadormecida pela saída austral da cidade. Bastaram, porém, algumas sacudidelas para despertar os cérebros e firmar os ânimos. O moral da tropa estava alto e tratamos de reforçá-lo com cantorias, evocando a importância de nossa missão desbravadora para abafar por completo os resquícios de receio. É aquela coisa: o período antes de uma tarefa desafiadora é sempre pior que a própria tarefa. Medo e dúvida andam em trio com a espera. Depois que a provação começa, temer é inútil. Pomos mãos a obra e seja o que Deus quiser.

A obra em que nossas mãos primeiro pousaram foi a cidade de São José do Mibipu.

Ainda eram duas da manhã, e seis dos cinco policiais de plantão na delegacia estavam dormindo a sono solto nas cadeiras, roncando a ponto de um dos meus colegas de caminhão achar que eram as metralhadoras da resistência.

Mas não houve resistência nenhuma. O único policial acordado ficou tão surpreso com a nossa chegada que nem chegou a sacar a arma. Só foi esboçar um gesto atrapalhado em direção ao cinto quando já estava desarmado e dentro do caminhão de prisioneiros. A essa altura, tínhamos invadido a cadeia e a Prefeitura, esvaziando os prédios dos respectivos bandidos. Nomeamos um novo prefeito, que redigiu rapidamente duas requisições para sacarmos o dinheiro público da cidade. Enquanto alguns executavam as requisições, parti com outros colegas para o cartório, e fizemos uma prazerosa fogueira com os processos que nossos contatos locais indicaram tratar-se de perseguição política, os títulos frios dos grileiros e outros notórios processos infundados de gigantes contra as almas simples do povo.

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