Capítulo 26 - O Trio de Estilo Musical Indefinido

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– Há coisas que é mais seguro não entender, Masha – Pavel disse, fitando a parede com ar sério, enquanto eu lhe contava sobre o comportamento estranho de Ióssif no dia anterior.

Estávamos no nono andar de um edifício residencial em que Pavel fora escalado para trabalhar nos últimos três meses. Agora a obra estava na fase da pintura interna que, segundo ele, era a que mais apreciava, por razões óbvias. Os olhos cinzentos percorriam a parede com ar concentrado, em busca de alguma falha ou diferença na cor.

Como eu fora parar ali? Simples. Pavel tinha passado na pensão para me acompanhar até o Komsomol de manhã. Ao nos ver chegando juntos, Ióssif lembrou-se que eu o conhecia, mandou Pavel me levar com ele para ajudar no que quer que ele estivesse trabalhando, e matou dois coelhos com uma única cajadada – eu estaria ocupada e sob vigilância.

Posso dizer que o arranjo não desagradou ninguém.

– Mas e se for algo sério? Quero dizer, talvez ele só goste de aparecer e arranjar encrenca onde não tem, para sentir seu próprio poder, mas talvez não – eu prossegui. – Mesmo isso já é contrário ao espírito do socialismo, veja bem! Era para ele fazer as coisas pensando no sentido social delas, no quanto elas vão servir aos cidadãos, e não no que... no quanto... enfim, para ostentar a própria autoridade – concluí, indignada. Pavel me lançou um olhar de lado e um pequeno sorriso enviesado.

– Um governo socialista e indivíduos preocupados com o bem coletivo são duas realidades muito diferentes, Mashenka – ele comentou, com ar condescendente.

– Percebi – comentei, fria.

– Não é que não se esteja tentando – Pavel falou, abaixando-se para mergulhar a brocha no balde de tinta. – Há muita propaganda nesse sentido. Muita mesmo. Mas é uma questão de consciência. A propaganda só atinge até certo ponto. Ela pode te direcionar e gritar que algumas coisas são certas, pode exercer uma tremenda pressão psicológica, mas no fim... é o indivíduo quem acaba fazendo a escolha.

Bufei.

– O indivíduo é um construto social – repeti, em tom de "Elementar meu caro Watson". – A sociedade direciona suas escolhas.

– Se você acha – ele disse, apenas, sem querer discutir, e se calou.

Eu não fazia questão de ser contrariada, então fiquei quieta também, me concentrando no trabalho.

Nós tínhamos pintado um cômodo durante a manhã, e estávamos no segundo da tarde. Pavel oferecera pintar três paredes enquanto eu concluía a quarta, como havíamos feito nas salas anteriores, mas dessa vez eu recusara. Achava que já tinha adquirido experiência o bastante, e podíamos dividir igualmente. Pavel não discutiu, e eu fingi que não via ele vindo atrás e corrigindo as falhas de uniformidade das minhas pinceladas. Era um pouco humilhante ter que usar uma escada para alcançar as partes da parede que ele atingia com um mero alçar do braço, mas eu não ia desistir. Finalizei a metade inferior da minha tela de concreto e subi alguns degraus.

– Pasha, você pode me passar o bal...

"Sério, Pavel Ivanovitch?", pensei, pondo uma mão na cintura, ao notar o olhar dele direcionado... para onde não devia.

– São bonitas, não é? – comentei, mordendo os lábios para conter o riso. Pavel despertou e subiu os olhos arregalados para o meu rosto, vermelho como os tijolos do prédio que víamos pela janela.

– Ãhn? Quê? Bonitas? Bem...

– As calças – eu cortei, saltando para o chão e dando uma voltinha, com a mão agarrando a lateral do pano cinza. – Minha vó fez para mim, de um tecido italiano qualquer que ela comprou numa feira em São Paulo. Ela me mataria se soubesse que estou usando numa construção. Eu mesma odiaria sujá-la de tinta, mas não trouxe nenhuma outra, e não podia vir de saia, não acha?

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