Capítulo 34 - O padre providencial

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Era outono novamente, outubro novamente, o começo do mês. Exatamente um ano desde que nós conhecêramos, por uma total casualidade. Era para ter sido só um contato, esquecido no dia seguinte; no entanto, lá estávamos nós um ano depois, velhos amigos almoçando juntos e jogando conversa fora. E tudo o que eu conseguia pensar era em como eu queria, como eu precisava que nos tornássemos mais que amigos.

– Aqui é tudo diferente, até a comida.

Em cada palavra dele, eu ouvia os versos de Olhos Negros, e queria perguntar... mas temia.

– Não, você não sabe o que é uma comida diferente – protestei, veemente. – No máximo em Leningrado o borsch é mais salgado. Diferente mesmo é feijoada – e me antecipei, explicando a formação do prato, pois Pavel se interessava por culinária, e com certeza perguntaria mais detalhes.

– Parece bom – comentou, no fim. – Um dia você podia fazer para eu provar.

– Se eu conseguir os ingredientes, faço sem problemas – garanti. – Sua tia não quis que você almoçasse em casa? – questionei, então, mordendo um pedaço de carne.

– Eu passei lá muito rapidamente, só para deixar a mala – ele explicou, bebendo um gole de chá. – Mas ela nunca cozinha. Quase nunca. Ela geralmente almoça e janta com os colegas de trabalho, no restaurante coletivo.

– E os seus primos não reclamam? – eu perguntei, espantada.

– Não tenho primos – ele respondeu, com um sorriso. – Minha tia é uma mulher solitária. Ela é meio que a ovelha negra da família... Ou ovelha vermelha – corrigiu-se, rindo. Quando eu fiz cara de que não tinha entendido a piada, explicou – Ela fugiu adolescente para se juntar à Revolução. Não é que meus avós não gostassem dos bolcheviques, – se apressou a sublinhar, – mas eles achavam que isso não era coisa de menina. Se fosse meu pai, não teriam ligado. E também se ela tivesse voltado e tido uma vida normal... Mas aí já não dava.

– Por quê?

– Ela se esterilizou – Pavel corou um pouco ao falar sobre o assunto. – Era um hábito meio comum entre as mulheres que lutavam durante a Guerra Civil. Sabe, se de repente ficassem grávidas, haveria outra pessoa para se preocuparem, e não conseguiriam se dedicar cem por cento à causa.

– Faz sentido... eu acho – comentei, incerta.

– Não sei, não sou mulher – Pavel encolheu os ombros. – Você faria algo assim? – perguntou, repentinamente sério.

– Não... provavelmente não – respondi, após meditar um momento. – É muito irreversível. E se eu sobrevivesse e me arrependesse depois? – uma pausa. – Sua tia se arrependeu? – eu quis saber.

Pavel sacudiu a cabeça.

– Acho que não. Ela nunca quis casar com ninguém, acho que nem namorado teve. Ela diz que é casada com a Revolução – ele sorriu. – Mas é uma pessoa bem amorosa. Adora quando a gente vem visitar. Só que a gente não vem muito, porque mamãe a acha esquisita.

– Coitada!

– Ela não leva a mal – Pavel encolheu os ombros. – Tem seus próprios assuntos para se ocupar. Mas quando a gente vem ela sempre quer fazer alguma coisa especial. Por exemplo, hoje ela inventou que quer dar uma festa. Quer ver gente jovem reunida, alegrar a casa, essas coisas – o rapaz girou os olhos para o alto, dividido entre a consternação e uma espécie de orgulho, ou satisfação. – Pediu para eu convidar 'meus amigos'. Mas eu não tenho nenhum aqui. Pode convidar os seus? – ele pediu, meio desnorteado. – Sei que é um pouco em cima da hora, mas ela decide essas coisas de um momento para o outro...

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