Capítulo 56 - Les Commères Miserables

221 49 340
                                    


Querida sobrinha,

Consultei a cartomante. Seguem os números para apostar na Loteria pelo ano inteiro. Ela disse que agora vai. Estou mandando o dinheiro também, para dois meses, pelo seu primo de Recife. Boa sorte, e qualquer coisa, me comunique pelo mesmo canal.

Tia Bete

Seguia-se uma longuíssima tripa de números, aos pares, que, não é difícil deduzir, eram o verdadeiro núcleo daquele telegrama aparentemente sem sentido e excêntrico até em seu sentido aparente. Não, eu não tinha nenhuma Tia Bete. Minhas tias se chamavam Antônia, Francisca, Conceição e várias "Marias" com complementos diferentes de "Clara", e nenhuma delas sabia por onde eu andava. Até devia ter alguma que jogasse na loteria, talvez outra que consultasse cartomantes, mas certamente não possuíam dinheiro suficiente para me adiantar o valor de apostas durante dois meses.

O verdadeiro nome de Tia Bete – ou antes, seu verdadeiro pseudônimo – era Leon-Jules Vallée. Ele devia ter algo bem relevante para comunicar, ou não se arriscaria a enviar um telegrama tão extenso. Mas, para saber do que se tratava, eu precisava atravessar as poucas centenas de metros que separavam minha nova casa da agência postal de Natal e me debruçar sobre um volume de Os Miseráveis, na língua original, trazido do Rio de Janeiro para essa finalidade.

Uma edição idêntica repousava nas prateleiras de Alphonsine Vallée, e uma terceira, no escritório central do Departamento de Ligações Internacionais, em Moscou. Talvez Silo possuísse uma quarta cópia, mas eu não tinha certeza. O fato é que cada trinca de números na folha à minha frente indicava uma página e uma linha na página e uma palavra na linha. Sim, por isso a necessidade de usar edições idênticas. Mas essa própria necessidade tornava o método um dos mais seguros, apesar de lento de decifrar.

Tudo bem, eu tinha a tarde inteira para isso. Astrakhanov preferia que não passássemos uma noite sequer na posse de uma mensagem recebida; ficava me apressando para decodificar logo, assimilar o conteúdo e destruir as provas. Mas ele estava em seu trabalho de fachada e só chegaria ao anoitecer. Assim, até lá, a casa era só minha, e eu podia me encontrar com Victor Hugo em paz. Podia encontrá-lo até na varanda, se quisesse, já que Astrakhanov não estava ali para me puxar a orelha.

Descendo aquela ruazinha vazia e escassamente arborizada no bairro da Ribeira e sentindo o raro frescor matinal, decidi que era isso que eu faria. Cruzei a cerca de madeira pintada e atravessei em um passo o jardim frontal, subindo as escadinhas da casa de alvenaria branca que o contato do Partido na Great Western tinha alugado para nós. Segui para o meu quarto, na parte dos fundos.

Sim, o meu quarto; lembro de ter me espantado com a generosa estrutura da casa, que tinha uma horta na parte posterior, sala de estar, de jantar, e três dormitórios.

– Para que tudo isso? – perguntei, entrando em um dos dormitórios e examinando-o, para ver se o escolheria para mim. – Não é desperdício de recursos do Partido? Sabe que a gente não recebe muito, e pelo que Silo e Caetano disseram, o dinheiro demora mais para chegar aqui – meu tom carregava uma ligeira repreensão.

– É por causa do disfarce – Astrakhanov explicara, apoiado despreocupadamente no umbral, as mãos nos bolsos da calça, e os tornozelos cruzados. – Somos um casal jovem, em tese se fixando na cidade de maneira definitiva. Não seria crível nos enfiarmos em um buraco que não tivesse espaço para a concretização dos nossos planos para o futuro.

– Que planos? – eu quis saber, dando-lhe apenas metade da atenção, enquanto arrumava minha máquina de escrever milimetricamente no centro da escrivaninha.

– A posteridade – voltei-me para ele, com as sobrancelhas franzidas. – Filhos – especificou. – Era isso ou casinhas minúsculas com um quarto só – justificou, dando de ombros. – Além disso, essa era a mais próxima da estação ferroviária.

Dias VermelhosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora