Capítulo 59 - Pé-de-Valsa

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– E quem é que vai fazer o convite ao padreco?

As bandeirolas coloridas pendiam agora sobre as nossas cabeças, separando-nos do céu azul profundo em que o brilho das estrelas disputava espaço com ocasionais balões. Lá estavam as Três Marias, acima das nossas cabeças. E no chão, mesmo sem contar comigo, devia haver bem mais de três Marias entre as esposas dos camaradas, a cuja companhia eu fora confiada, enquanto eles, reunidos em torno de duas mesas um pouco apartadas, riam da história do padre acidentalmente comunista. Os que não tinham comparecido à missa custavam a acreditar nos relatos de Quatro, Astrakhanov, Praxedes e mais alguns que assistiram à liturgia.

Eu lançava insistentes olhares invejosos para eles por sobre o ombro, deixando a criança no meu colo se lambuzar à vontade com a maçã-do-amor que Quatro fizera "John" comprar para mim. Eu nem gostava de maçã, só esperava que o pequeno não furasse o olho com o palito. Quem era mesmo? Ah sim, ainda era Zezinho. Eu conhecera mais uma dezena de menininhos e menininhas durante o dia, e eles pegavam confiança incrivelmente fácil. Vários dos menores já tinham ocupado e abandonado meu colo. Seria algum magnetismo que restara dos dias de professora?

Nosso grupo feminino ocupava dois bancos da praça da matriz, e algumas das comadres estavam de pé em frente, tapando minha visão de parte das barraquinhas de comida e jogos. Absorviam-se em conversas que eu devia escutar, já que seria bom me aperfeiçoar em economia doméstica para o caso de novos atrasos no pagamento do Komintern. Mas minha cabeça estava lá nas risadas dos colegas, e nos telegramas que eu tinha escondido na blusa para repassar-lhes.

Afinal de contas, aquilo era para ser uma reunião.

– Você é metida com política, não é, Dona Anita? – pronunciou uma voz tranquila do lado do meu ouvido, e eu voltei o rosto para lá. Zefinha me encarava, com seu outro filho no colo.

– Olha... eu sou, sim.

– Muito bonito seu texto. Quatro leu pra mim. Bem empolgado, firme! Gostei – ela elogiou, com um sorriso amplo.

– Obrigada – respondi, com outro sorriso, para disfarçar a minha vontade de estrangular o Camarada Quatro. Ora, para que usar um pseudônimo se ele ia ficar contando que eu quem escrevia o periódico? O jeito agora era tentar impedir que se espalhasse a informação. – Se puder não...

– Eu sei, eu sei. A Polícia. Se preocupe não, essa boca é um túmulo. Tem muita coisa que eu estou acostumada a não dizer. Eu e elas – disse, indicando com um aceno as outras esposas, que agora discutiam saúde infantil.

– Quer dizer que vocês também...?

– Se a gente participa das encrencas deles? Algumas sim, poucas. Tem as que casaram justamente por eles serem... bom, você sabe. Essas lutam junto. A maioria se casou com eles pela belezura ou pelos agrados ou porque o pai arranjou... ou até por admirar assim esse jeito idealista que eles têm, sabe? E tem as que nem concordam com a causa, mas aceitam, porque né? É o marido, vai fazer o quê. Tem que ser leal. Mas a maioria de nós tá muito ocupada nas pelejas diárias pra ficar pensando em salvar o mundo. Quando você tem umas boquinhas assim pra alimentar – ela indicou as crianças – e nem sempre o homem tá presente, porque eles podem ser levados a qualquer hora, sabe? Bem, nessa rotina não sobra muito espaço pras lutas grandes, não. Ao menos até que as crias crescerm e poderem fugir junto.

– Faz sentido... acho.

Lembrei-me do costume das revolucionárias russas de se esterilizarem. Também fazia algum sentido diante do quadro que Zefinha me apresentava. Pensando por esse viés, foi bom eu nem ter oportunidade de engravidar. Continuava sem pretender me esterilizar, mas tampouco teria coragem de tirar uma criança, então era melhor subjugar meus desejos, pensando no futuro.

Dias VermelhosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora