Capítulo 8 - Novos Recrutas

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Sorrindo para mim, do outro lado da mesa, estava ninguém menos que o pequeno e ingênuo Iliá Abramovitch.

Fiquei sem entender nada.

Percebendo minha perplexidade – ou melhor, nossa, pois pela cara dos meus colegas, eles também o reconheciam – o homem deu alguns passos na nossa direção.

– Desculpem-me a inconveniência de não ter me apresentado completamente nos nossos encontros anteriores. Chamo-me Iliá Abramovitch Tabanov. Abramovitch é apenas o patronímico – esclareceu, estendendo a mão para apertar as nossas, como se estivesse travando conhecimento novamente. – Vocês, nós sabemos que não deram nomes falsos. Foi para isso que não me apresentei logo de início; não poderia avaliá-los corretamente se soubessem que se comunicavam com seu supervisor.

– Avaliar-nos? – eu balbuciei, finalmente conseguindo arrancar uma palavra da confusão em que girava minha mente.

– Sim. Vocês certamente entendem que esse treinamento que oferecemos é sigiloso... e extraoficial – Tabanov dava alguns passos pela sala enquanto falava, sempre com tranquilidade. – Não podemos sair admitindo para os outros países que estamos treinando seus cidadãos para aquilo que muitas legislações consideram atos contra a soberania nacional, e até mesmo crimes. Muito embora não sejamos nem de longe o único país a fazer isso – pontuou, com ironia.

– Claro – eu ouvi a voz rouca de José Maria.

– Por isso, antes de admitirmos alguém no treinamento, uma checagem de antecedentes se faz necessária, entendem? Na verdade, não apenas uma checagem de antecedentes, mas uma verificação completa de vários aspectos: formação ideológica, fidelidade partidária, adequação ao treinamento... entre outros pontos. Espero que nos perdoem por submetê-los aos nossos pequenos testes sem aviso prévio, mas fico feliz em comunicar que vocês foram considerados aptos a iniciar o programa de treinamento da Escola Leninista Internacional – e, com um sorriso, ele retornou para seu lugar na ponta da mesa.

A que raios de teste ele se referia? Eu não me lembrava de ter me submetido a prova nenhuma. Ok, tinha havido um questionário a preencher na delegacia em Leningrado, inclusive com um campo para eu escrever um resumo da minha vida até então, mas não podia ser aquilo, podia? Parecia um procedimento normal de imigração.

Então meus olhos, que tinham seguido Tabanov o tempo todo, focalizaram o restante do meu campo de visão, e eu percebi que havia vários ocupantes na sala, alguns de pé em cantos na penumbra, como o oficial que nos trouxera – causando-me um pequeno arrepio – outros sentados ao redor da mesa, e, dentre estes, o casal de estadunidenses com que eu viajara mais cedo. Adams – se é que este era seu nome real – me cumprimentou com um sorriso simpático, e Carol, com um sisudo aceno de cabeça.

De repente, um estalo, e minha mente se clareou. Agora tudo fazia sentido, toda aquela conversa meio dissidente no trem, e depois o debate com Iliá no caminho, tudo isso fora encenado com o objetivo de me testar. De verificar se eu me alinharia às críticas ao sistema, ou permaneceria fiel à linha ortodoxa do Partido. Era incrivelmente esperto, e uma técnica bastante agressiva, jogar a isca para ver se a pessoa mordia.

Meu estômago afundou um centímetro ao pensar no que mais, ao longo da minha viagem, faria parte da averiguação. O estranho Camarada Ióssif, com seus olhares e gargalhadas que pareciam esconder um segredo? E... Pavel? Será que aquelas pessoas eram a família dele mesmo ou seriam atores? Também eles tinham soltado algumas frases ideologicamente dúbias... O passeio ao clube de jazz fora só para ver se me agradava aquele "ofensivo caos de sons raivosos", nas palavras de Górki?

Por sorte eu tinha demonstrado alguma indiferença em relação àquele tipo de música. Mas passar nos testes não me consolava da ideia de que Pasha fosse apenas um bem treinado agente, e que sua interação comigo podia ser nada mais do que parte de um detalhado, abrangente e quase invasivo programa de avaliações. Precisava tirar a dúvida; precisava escrever-lhe, tão logo possível. E se ele não respondesse, eu saberia... Mas eu não tinha como escrever-lhe sem um endereço para o qual ele pudesse enviar a resposta, e algo me dizia que o meu próximo endereço fixo seria do tipo que não se pode revelar nem a estranhos, nem a amigos.

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