Capítulo XVI

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Eu saía do supermercado, carregando quatro sacolas de compras, quando avistei Dona Ana, uma das moradoras mais antigas da cidade, atravessava a rua com sua inseparável bengala. Uma bolsa ecológica pendia graciosamente de seu ombro.
— Dona Ana, espere. – me aproximei dela.
— Ema. – ela me olhou, abrindo um sorriso. Seu cabelo era branco como as nuvens, e as rugas em sua pele contavam histórias de uma vida vivida plenamente.
— Posso acompanhá-la até em casa? – indaguei.
— Claro, fofinha. – ela me ofereceu a mão livre.
— Deixe-me levar sua sacola. – me dispus. Dona Ana permitiu. Acompanhei-a por três quarteirões até sua casa, onde fui gentilmente convidada a entrar e aceitar um chá. Sentei-me no sofá da sala, onde as almofadas exibiam um padrão floral desgastado pelo uso. O aroma acolhedor do chá caseiro preenchia o ambiente, criando uma atmosfera nostálgica. Dona Ana compartilhava suas memórias sobre a família.
— O Bernardo era um homem incrível, me deu três filhos excepcionais. Você sabia que o Binho é médico? Ele realiza cirurgias cardíacas. O Toninho é um professor universitário muito respeitado. Já a Debinha é  uma dentista. Deixa os sorrisos mais bonitos.
— Que fascinante. – fingi surpresa, mesmo sendo a décima vez que ouvia sobre a família dela.
— Você é uma mocinha muito gentil. Sua mãe deve sentir muito orgulho de você, não é?
— Na verdade, ela acha arriscado ser da polícia. – expliquei.
— Entendo a preocupação dela, mas em Santa Mônica, nada de ruim costuma acontecer. O prefeito é um bom líder.
— É. – concordei a contragosto. Consciente de que William Johnson era um sujeito hipócrita, associando-se a políticos corruptos e empresários questionáveis, ele habilmente maquiava suas ações com programas populistas. Seu terceiro mandato, alternando com seu irmão, Kevin Johnson, delineava uma verdadeira dinastia no poder. A esposa ocupava o cargo de vice, enquanto os filhos mais velhos, Teodoro e Cesar, estavam imersos na política. Já a filha mais nova, Norman, era rebelde e desinteressada por política, havia se graduado em publicidade e apesar da relutância  foi envolvida na campanha do pai. Sua fama de envolvimento íntimo com mulheres era abafada pela equipe do pai que tentava retratá-la como uma jovem casta. William contava com o respaldo dos moradores conservadores e fazia questão de abafar quaisquer rumores sobre a bissexualidade de sua filha.
Deixei a casa de Dona Ana com uma generosa fatia do delicioso queijo que ela mesma preparara. Ao chegar em casa, iniciei os preparativos para o jantar. Sarah estava prestes a chegar, e encontraria mais do que um simples balde de pipoca.
Quando ouvi batidas na porta, prontamente atendi, mas para minha decepção, era Nicolas.
— Oi, Ema. – ele invadiu minha casa, ainda fardado.
— O que faz aqui? Não tem trabalho na delegacia? – indaguei, acompanhando-o.
— Que bom que está feliz em me ver. Vim saber o que aconteceu depois que você e a mulher do motel saíram da boate. – ele se acomodou na minha poltrona. — Tô sentindo cheiro de comida de verdade. Você cozinhou?
— Não aconteceu nada demais. Eu a deixei em casa. Foi só isso. – respondi.
— Só? Você está de banho tomado, tirou aquele moletom que parecia seu uniforme, cozinhou... Ema, já te vi jantar batata chips com ketchup. Tem algo muito errado em você.
— Está insinuando que sou desleixada? – estreitei os olhos.
— Estou dizendo que você está arrumada demais para comer sozinha.
— E-eu não estou arrumada demais. – afastei os braços, olhando para minha vestimenta. Vestia uma calça preta de caimento reto, uma camisa social marrom e um cinto de couro preto marcando a cintura. Os botões superiores da camisa estavam abertos, exibindo uma corrente fina. Meus sapatos eram pretos, com um pequeno salto quadrado.
— Ih, gaguejou. Você está nervosa. Tenho certeza de que convidou alguém para jantar. Foi a mulher do motel? Eu sabia que você estava interessada nela.
— Que tal falarmos sobre o dia em que te encontrei dormindo em um beco apenas de cueca? – desafiei.
— Como você joga baixo, Ema Campos. – Nicolas levantou-se da poltrona. — Já vou, amanhã estarei de folga e vou pescar no lago do parque.
— Pescar sapatos velhos? Quase não há peixes lá.
— Não irei pelos peixes. Irei pelas mães solteiras que levam os filhos para fazer piqueniques. Atraio a atenção das crianças e consequentemente a atenção das mães. Posso ser um bom padrasto, Ema. – disse ele.
— Tem certeza que passou no perfil psicológico? Devo ser amiga de um sociopata. – comentei.
Nicolas riu.
— Não faço mal algum a elas, posso até levar as crianças para o futebol ou para o balé. Posso ser um bom pai substituído. – disse ele.
— Deixe as mães solteiras em paz, elas já têm trabalho com os filhos, não precisam cuidar de outra criança. – alfinetei.
A porta da sala foi aberta por completo. Tanto eu quanto Nicolas olhamos na direção.
— Oi. – era Sarah. — Atrapalho?
— Caraca, garota. Não me assusta assim, eu podia ter atirado em você. – disse Nicolas, e só então percebi que ele havia levado a mão ao coldre.
— Desculpa. – Sarah permaneceu parada na entrada da sala.
—  Você perdeu o juízo? – olhei para Nicolas. – Acha que é um pistoleiro do velho oeste? – levei a mão direita à orelha dele e puxei-a, como uma mãe repreendendo o filho.
— Ai, Ema! – Nicolas gemeu, inclinando-se lateralmente.
— Vocês parecem irmãos. Tem algum laço de sangue? – Sarah indagou.
— Não. – respondi.
— Oi, amiga da Ema. – Nicolas acenou com a mão direita. Soltei a orelha dele e dei passos à direita de Sarah.
— Oi, amigo da Ema. – Sarah respondeu, com um sorriso nos lábios. — Imagino que não tenhamos o mesmo tipo de amizade.
— Quê? – Nicolas abriu a boca, espantado. — Vocês estão fazendo sexo?
— Nicolas, assim que reaver meu revólver, você será um homem morto. – ameacei-o, ciente de que ele não me levaria a sério.
— Eu falei para a Ema que a cara metade dela estava na boate. Eu estava certo. – Nicolas sorriu, provocando-me.
— Você tem um bom amigo, Ema. – Sarah me olhava.
— Eu chamaria isso de carma, mas você pode chamar de amizade. – respondi.
— Eu gosto de lésbicas. – disse Nicolas, recebendo a atenção de Sarah.
— É?
— Sim, não sei se todas elas são ranzinzas como a Ema. Você parece simpática, então não deve ser uma regra. – ele comentou.
— Ele é um brincalhão. – sorri sem jeito. — Pena que tem um compromisso inadiável hoje e não poderá ficar para o jantar.
— Tenho? – Nicolas coçou a cabeça, confuso.
— Tem, esqueceu? Melhor ir logo. – incentivei.
— É uma pena mesmo, Ema. Seria bom poder conversar mais com seu amigo. Ele deve saber seus segredos. – disse Sarah.
— Não sei muitos, a Ema é muito fechada. Só descobri que ela era lésbica quando a vi passando a mão na bunda da Layla no estacionamento da delegacia.
— Isso não é verdade. – retruquei. — Eu só estava me despedindo e minhas mãos estavam nas costas da Layla.
— Era? Achei que tinha visto você passar a mão na bunda dela.
— Não dê ouvidos para o Nicolas. Ele é um grande contador de histórias imaginárias. – falei para Sarah.
— Me diga, Nicolas. As celas da delegacia estão desocupadas? – Sarah indagou.
— Estão, por quê?
— Nada, apenas curiosidade. – Sarah esboçou um pequeno sorriso.
— O que está planejando? – murmurei para ela.
Sarah aproximou o rosto do meu, beijou minha bochecha e sussurrou em meu ouvido:
— O que acha de se divertir comigo em uma cela?
— Caramba... – afastei Sarah pelos ombros, buscando seu olhar. — Isso foi uma brincadeira?
— Talvez. – ela piscou para mim.
— Ema... Eu posso ficar? O cheiro da comida está muito bom. O máximo que já fez para mim foi Yakisoba no micro-ondas. – Nicolas disse com um tom de voz suave.
— Deixe ele ficar. – pediu Sarah.
— Tá, fica. – me dei por vencida.
— O que temos no cardápio? – Nicolas esfregou uma mão na outra.
— Vá até a cozinha. Pode pôr a mesa. – olhei para ele.
— Eu vou atacar a comida se vocês não chegarem lá em 2 minutos. – Nicolas avisou, antes de seguir para a cozinha.
— Seu amigo é legal. – disse Sarah.
— É. – olhei para ela. — Como foi no escritório?
— Exaustivo. Li uma pilha de processos. Quase precisei fazer hora extra, mas a Mari me ajudou. Falei sobre você para ela por telefone. Ela ficou ansiosa para te conhecer.
Franzi a testa.
— Mari? A dominatrix? – indaguei.
— Para mim é só Mari, minha melhor amiga. Ela é uma pessoa muito gentil dentro de ternos sociais, mas usando látex... – Sarah estalou a língua. — Não tenha medo dela, tá? Você conhecerá a versão gentil.
— Advogada?
— Sim.
— Conheci ela na firma, e entre conversas percebemos que tínhamos algumas afinidades, como gostar de BDSM. Ela está há bem mais tempo nisso que eu. E me esclareceu muitas dúvidas.
— Dani também é advogada?
— Dermatologista.
— Sarah, se importaria de me contar como conheceu a Norman? – indaguei receosa.
— Lembra da boate temática que mencionei? Foi lá. A Norman estava bastante interessante naquela noite, me pagou uma bebida, conversamos e resolvemos passar a noite juntas.
— Ah. – olhei para trás. — Vamos.
— Está com ciúmes, Ema?
— Não. – voltei a olhá-la. — Como poderia?
— Eu acharia fofo. – Sarah tocou minha bochecha e me deu um selinho. — Você só parece durona, mas é bem sensível, sabia?
— Impressão sua. – respondi. — Me diga, esqueceu o vinho?
— Droga! Eu sabia que estava esquecendo algo. – Sarah respirou fundo. — Posso ir pegar.
— Não é necessário. Podemos beber cerveja. Se importa?
— Não.
— Venha. O Nick deve estar desesperado para comer. – ofereci a mão. Sarah segurou-a e foi para a cozinha comigo.

Continua...

DOMINADORA POR ACASO (Sáfico)Where stories live. Discover now